sábado, 31 de maio de 2014

A imagem é tudo?


A IMAGEM É TUDO?

Clóvis Campêlo

Surgida na Idade Média por uma necessidade dos pintores renascentistas de copiar com perfeição os cenários da vida real, a câmera escura terminou por evoluir para a invenção da máquina fotográfica. Nesse sentido, muito contribuíram as descobertas científicas desde aquela época.
De início, porém, a grande dificuldade era fixar as imagens fugidias e eternizá-las em qualquer suporte físico. Assim, depois de grandes experimentos e invenções, chegaram artistas e cientistas ao papel quimicamente trabalhado, que durante anos foi a moldura ideal para as imagens capturadas.
Hoje, quando as imagens foram desmaterializadas e existem ou no mundo virtual ou no espaço magnético das máquinas fotográficas atuais, tudo isso nos parecerá muito romântico.
Mas, a vida dos grandes fotográficos desde então, nunca foi fácil. Pois, além da simples documentação imagética de pessoas e acontecimentos, a eles também caberia a obrigação de personalizá-las e diferenciá-las de uma fotografia simplesmente reprodutiva.
Por si só, um simples objeto pode ter a sua imagem apreendida de várias maneiras, influenciado aí, no ato de fotografar, não só o enquadramento, como a contextualização e a bagagem de conhecimentos do fotógrafo em relação ao que documenta e à sua importância histórica ou social.
Por outro lado, a fotografia pode ser importante esteticamente ou simplesmente pelo valor documental e histórico que pode carregar nas suas informações.
Fotografar, portanto, não é simplesmente fazer com que o tempo e o espaço morram dimensionalmente contidos naquela moldura. Essa importância histórica ou estética também não dependerá diretamente da qualidade do equipamento ou da maquinaria utilizada. A sensibilidade do fotógrafo, aí, sempre será o elemento de maior importância e relevância.
Antes de chegarmos à fotografia digital, durante muitos anos usamos a fita celuloide para a obtenção de imagens. Nos anos 60, com a ideia do “make yourself”, lançada pela Kodak, as máquinas foram simplificadas e tornaram-se acessíveis a qualquer pessoa que quisesse exercitar a sua capacidade de fotografar.
Essa nova “revolução” fez com que a fotografia se popularizasse no mundo e criasse um caminho informativo de mão dupla, inverso à monopolização inicial.
Hoje, mais do que nunca, com as imagens digitalizadas e definitivamente acessíveis a todos, transformou-se a nossa percepção do mundo, tanto no que se refere ao micro quanto ao macrocosmos, bem como ao universo particular de imagens criadas ou imaginadas que cada um traz dentro da sua cabeça.
Que cada um seja definitivamente dono do seu momento decisivo!

Recife, maio 2014

terça-feira, 27 de maio de 2014

A prosperidade dos ímpios


A PROSPERIDADE DOS ÍMPIOS

Clóvis Campêlo

Meus pés quase resvalaram
ao invejar arrogantes,
que acumulam riquezas
e ocupam-se com malícias.

Têm os corpos bem nutridos
e semeiam a violência;
sua língua varre a terra,
zombam, oprimem e matam.

No entanto, estão em terreno
escorregadio e bruto,
precipitam-se em ruínas
por eles mesmos criadas;

são carne sem coração,
zumbis que andam sem alma,
desvairadas criaturas
negando a essência da vida.

Recife, 2008

sábado, 24 de maio de 2014

No tempo dos simulacros


NO TEMPO DOS SIMULACROS

Clóvis Campêlo

Mais de quarenta anos depois do fim do grupo, os Beatles ainda influenciam, de forma direta e indireta, artistas e consumidores no mundo inteiro.
Uma das provas dessa afirmativa é a existência dos numerosos grupos de imitadores da banda. Na cidade de Liverpool, na Inglaterra, seu lugar de origem, existe um encontro anual onde conjuntos do todo o mundo se apresentam para um público não só repleto de saudosistas, como também de novos e jovens admiradores. No mundo pós-moderno de hoje, a imitação pode ser um bom negócio.
Vivemos, aliás, o tempos dos simulacros. Superado o ideal da originalidade, implantado pelos sonhadores românticos de antanho, a cópia, desde que de boa qualidade, não deve mais ser reprimida. Pelo contrário, pode ser um bom e rentável negócio. Talvez não se trate mais da mimesis, onde o aprendiz de artista imitava o mestre até a exaustão e superação. Mas, simplesmente de reproduzir com fidelidade uma obra original e de grande aceitação pelo público consumidor. Existe um bom mercado para isso. Que os digam os artistas plásticos chineses que copiam com extrema perfeição e qualidade qualquer pintor ocidental de talento reconhecido. Que o digam também as dezenas de grupos musicais que imitaram e imitam os Beatles, ou as pessoas que imitaram e imitam o inesquecível Elvis, the pelvis.
Aliás, na modernidade dos anos 60, foi a originalidade do fabuloso quarteto inglês que o elevou à condição de superestrela do mundo pop. Desde essa época que proliferaram as imitações. Quem não lembra, por exemplo, que o som de Renato e Seus Blues Caps, intérpretes e tradutores brasileiros dos Beatles, durante um bom tempo, alimentou a musicalidade de várias gerações de jovens brasileiros? Posso afirmar até que aqui em Pindorama os boinas azuis cariocas eram mais cantados do que o original britânico. Coisas dessa deliciosa sociedade de consumo em que vivemos.
Hoje, findo o grupo inglês e impossibilitada a sua volta, haja vista as mortes de Lennon e Harrison, nada mais justo do que tê-los novamente através dos seus imitadores.
Além do mais, as novidades e transformações da arte não surgem a partir do nada. Elas nada mais são do que a condensação de novos a latentes anseios coletivos. A genialidade que não conseguir incorporar isso, passará despercebida como uma atitude demasiadamente adiantada para o seu tempo e que só será interpretada e decodificada a posteriori. São muitos os exemplos pertinentes a esse tipo de situação, seja na música, na literatura ou nas artes plásticas e artes em geral.
A genialidade pede sintonia e o artista protagonista nada mais será do que o instrumento dessa mudança. Nem sempre terá plena consciência do papel que cumpre e da sua importância nesse cenário de mudança.

Recife, maio de 2014

quinta-feira, 22 de maio de 2014

No terreiro da paz Salu descansa, silencia a rabeca genial


NO TERREIRO DA PAZ SALU DESCANSA
SILENCIA A RABECA GENIAL

Clóvis Campêlo

Bem mais longe de onde o olhar alcança,
bem depois do azul celestial,
entre as cores dos caboclos de lança,
sob o som de um batuque triunfal,
diferente, com uma semelhança,
sob o umbral da porta principal,
iluminado por uma esperança,
regressando ao estado original,
no terreiro da paz Salu descansa,
silencia a rabeca genial.

Recife, 2008


terça-feira, 20 de maio de 2014

Metrópole


METRÓPOLE

Clóvis Campêlo

Selva selvagem, hirta, bruta,
monóxido de carbono
negando a clorofila.
Definitivamente contaminado,
no entanto, não cantarei
o “fugere urbem”
(em minhas veias correm
partículas de chumbo,
kriptonita moderna).
Alimento-me da tua desordem,
respiro tua energia caótica,
bebo o teu ar impuro.
Amodeio-te e grito isto
bem mais alto do que
o som das tuas buzinas.
Incendeias ao crepúsculo,
violeta, violenta, violada
(insetos de ferro rasgam-te
as entranhas),
o diabo solto na rua,
no meio do redemoinho.
Estrebuchas até que
o silêncio da noite,
vasta e mesmíssima noite,
jogue sobre ti
o seu manto negro.

Recife, 1992

sábado, 17 de maio de 2014

A morte de Liêdo Maranhão


A MORTE DE LIÊDO MARANHÃO

Clóvis Campêlo

Um fato importante marcou essa semana que se encerra hoje: a morte de Liêdo Maranhão.
Contava Liêdo que na mocidade, atendendo a um convite de Naíde Teodósio, ingressou no Partido Comunista Brasileiro, onde militou até depois do golpe militar de 1964, chegando inclusive a ser Secretário de Finanças do Diretório Municipal, fazendo uma ponte entre o partido e o Movimento de Cultura Popular do Recife, durante o primeiro governo de Miguel Arraes.
Nos últimos tempos, porém, dizia-se apolítico e decepcionado com os rumos da política partidária. Afirmava que o fim da União Soviética foi uma coisa que marcou negativamente a sua crença no socialismo.
Na sua casa, no Bairro Novo, em Olinda, construiu um verdadeiro museu de arte, além de uma biblioteca impressionantemente organizada. Um dos seus maiores receios era o destino que tudo isso tomaria após a sua morte. Costumava dizer que os maiores inimigos dos livros não são as traças, mas as viúvas.
No seu acervo mantinha uma imagem em tamanho natural do ex-governador Miguel Arraes de Alencar, por quem, nos últimos anos, exercitava uma profunda aversão. Gostava de se deixar fotografar dando uma banana para a velha raposa política, também já falecida. Também mantinha uma profunda aversão pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e pelo Partido dos Trabalhadores. O seu último ídolo político, inclusive, era o ex-presidente Fernando Collor de Melo.
Embora fosse uma pessoa de boa formação cultural, que gostava de declamar Baudelaire em francês e os poemas Augusto dos Anjos, Liêdo achava-se mesmo era um escriba dos excluídos, um escritor porta-voz das ideias e do modo de falar do povão.
Uma vez, nos anos 90, fomos a Beberibe fotografar Aninha, como Liêdo a chamava, uma negra linda que vendia temperos em uma barraca na feira. Aninha era uma figura simpaticíssima e estava radiante com a ideia de ser fotografada para uma capa de livro de Liêdo. As fotografias ficaram ótimas, pois Aninha era realmente uma bela mulher perdida entre os demais feirantes. Só o olhar clínico de Liêdo conseguiria perceber isso. Hoje, não lembro mais qual foi o livro que Aninha ilustrou com a sua beleza.
Uma única vez cheguei a vê-lo tocando pandeiro. Foi no Bar Savoy, também nos anos 90. Liêdo lançava o livro “Cozinha de Pobre” e acompanhou o sebista Gilberto que tocava o seu violão abrilhantando a festa.
Com a sua simplicidade, podia ser encontrado aos domingos comendo uma galinha de cabidela no Mercado da Boa Vista. Ou, durante a semana, comendo um bolo de milho em uma pequena lanchonete próxima a Praça do Sebo, que era um dos seus redutos preferidos.
Simples, Liêdo Maranhão era assim.

Recife, maio de 2014

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Poema da pedra cósmica


POEMA DA PEDRA CÓSMICA

Clóvis Campêlo

Doce como um cordeiro,
livre como um falcão.
Tecendo a sua vida
como a aranha
tece a sua teia.

Tranqüilamente só
que a vida é solidão,
muito mais do que a morte.

Simplesmente zen
que o equilíbrio
é movimento
alimentado pelo tempo
que a tudo transforma.

Firme como uma rocha
a enfrentar tempestades;
inteira, mas dividida
em duas metades.

Pedra cósmica,
sólido equilíbrio
a cavalgar o tempo,
atravessando a vida.

Pedra cósmica,
miragem na linha do horizonte,
a dividir o que é
do que será.

Recife, 1992

terça-feira, 13 de maio de 2014

Penduricalhos


Fotografia de Clóvis Campêlo/1995

PENDURICALHOS

Clóvis Campêlo

Concretos, sobre o vazio,
significam a fé,
que se vende nas esquinas
em dias de sol intenso.

Os olhos em movimento,
cortam azuis infinitos,

e refletem falso brilho.
Entre o dito e o não dito,
seguem o pai e o filho,

em busca sempre do nada,
o enganoso caminho.

Recife, 2010

sábado, 10 de maio de 2014

Azul da cor do mar


AZUL DA COR DO MAR

Clóvis Campêlo

A mim, chamou
o mar do Pina e
dividi-me entre ele
e os teus olhos de menina,
azuis da cor do mar.
E no transitório
verbo amar,
fora de mim,
encontrei em ti
o meu lugar.
Naquele território transitivo,
de mim fui fugitivo para
poder melhor te decifrar.
E quando pensava
ter encontrado
o definitivo,
foi tua a hora
de escapar,
deixando em mim
um vazio imenso,
sentimento intenso,
azul da cor do mar.
Recife, 2007

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Duzentos milhões em ação


DUZENTOS MILHÕES EM AÇÃO

Clóvis Campêlo

Éramos muitos pequenos ainda, mas já participávamos do clima reinante de euforia. Tudo nos parecia azul, inclusive o muro de combogós da casa da velha Anunciada, que ficava em frente à casa dos meus pais. A goleada já se anunciava quando decidimos pular na areia de cima do muro citado. Meu irmão Carlinhos, com apenas quatro anos de idade, deu-se mal com uma luxação no braço. Dona Tereza, minha mãe, achou que eu, por ser o mais velho, deveria ser responsabilizado pelo acontecido. Assim, antes do encerramento do tempo regulamentar, ganhei umas chineladas. Foi dessa maneira, apanhando, enquanto Didi, Pelé, Vavá e companhia bailavam na Europa, que ganhei a minha primeira Copa do Mundo, em 1958.
Em 1962, mais experiente, não me arrisquei a tanto. Além do mais, com uma crise de furunculose na coxa esquerda não teria a mesma mobilidade. Após o jogo e a vitória contra a Checoslováquia, lembro do meu pai comentando com João Amaral, um dos vizinhos, o feito inacreditável da seleção brasileira de futebol conquistando o bi mundial. Mas também foi chorando feito o menino que eu era que comemorei o título. Não só pela emoção reinante no ar, mas também por ter “magoado” as perebas durante a comemoração de um dos nossos gols. Mas tudo era alegria.
Em 1970, quando do tri, já era homem feito e servindo a gloriosa Força Aérea Brasileira. Foi a primeira Copa televisionada diretamente para nós, brasileiros, ainda em preto e branco. Alguns dos jogos da nossa seleção, assisti na Base Aérea do Recife, em serviço. Mas a grande final, contra a Itália de Gigi Riva, assisti na cada dos pais de um amigo, na Rua Comendador Morais, no Pina, que ficava na esquina da rua da zona famosa, do baixo meretrício. Findo o jogo e ganho o tri de forma contundente, só nos restava os salões de Alaíde Drinks, nossa pensão preferida, com sua radiola de fichas, para a comemoração. O meu irmão Carlinhos (fiel escudeiro, como sempre ao meu lado em mais uma final de Copa do Mundo) entrou no salão com uma bandeira enorme do Brasil, que logo se enrolou em um dos ventiladores de teto, causando uma pequena confusão. Contornado o imbróglio (afinal tudo era motivo para festa), mergulhamos na cerveja e na alegria, ao lado das raparigas e dos outros clientes. Aos dezoito anos de idade, ninguém tem motivo suficiente para ser infeliz. E, afinal de contas, éramos tricampeões mundiais de futebol, espantando de vez o complexo de vira-latas a que se referia com tanta propriedade o escritor Nélson Rodrigues.
Nem na época do regime de exceção, na época da ditadura militar, sob a tutela de quem conquistamos o histórico título, coloquei-me contra a seleção brasileira de futebol, como alguns o fizeram. Afinal, conforme mais uma afirmação rodrigueana, a seleção brasileira era a pátria de chuteiras. O povo brasileiro referendou aquela conquista e eu, que também sou brasileiro, fui atrás com orgulho e satisfação.
Se depender de mim, este ano, seremos duzentos milhões em ação!

Recife, 2014

terça-feira, 6 de maio de 2014

Absurdo Futebol Clube


ABSURDO FUTEBOL CLUBE

Clóvis Campêlo

Embora diante dos absurdos do mundo o poeta tenha dito que nada mais justificaria o uso do sinal de exclamação, todos nós nos assombramos e emitimos interjeições de espanto com a morte trágica do torcedor ao final do jogo entre o Santa Cruz e o Paraná. Que impulso estranho e fatal o teria levado a sair de casa no intervalo de uma partida que não envolvia o clube do seu coração para um encontro com a morte, em uma noite de chuva intensa na cidade do Recife?
Segundo a imprensa, como recomendou a polícia, a torcida do Santa Cruz foi a primeira ao deixar o estádio ao término da partida. Só meia hora depois é que a torcida do adversário visitante foi liberada. Mesmo assim, algum espírito maligno ousou se ocultar em um dos banheiros do estádio para praticar o ato assassino. Como explicar essa sanha mortífera em um simples jogo de um campeonato brasileiro da Série B? São indagações interrogativas que insistem em nos inquietar a mente.
Se o Estatuto do Torcedor fosse mesmo levado à sério, o Estádio do Arruda (e talvez nenhum outro do Estado, com exceção da Arena Pernambuco) não teria condições de ser liberado para nenhuma competição. Mas, tanto no campeonatos estadual, regional e no brasileiro foi vistoriado pela entidades competentes e liberado para receber o público. Isso nos leva ao entendimento de que os interesses políticos e comerciais prevalecem diante das questões que garantam a segurança dos torcedores.
Uma falsa questão e que serviu apenas para causar impacto midiático e impressionar foi a proibição da venda de bebidas alcoólicas nos estádios. Não se bebe nos estádios, mas bebe-se nos seus entornos, muito embora não me pareça que essa seja a causa dos desvarios. Pois se a bebida, que é uma droga permitida e que rende lucros e renda aos clubes e ao Estado não é permitida, a maconha e talvez outras drogas até mais perigosas são consumidas livremente nas arquibancadas. Não vejo nenhuma atitude coibitiva ou mesmo de represália em relação a esse uso. Com certeza, o louco sanguinário que arremessou o vaso do alto das arquibancadas para atingir as pessoas que estavam na rua, não podia estar em seu estado normal de lucidez.
O futebol hoje está inserido no contexto da indústria do entretenimento. Muito dinheiro rola diante de eventos que mexem com o equilíbrio emocional dos torcedores. A própria Copa do Mundo é um evento de bilhões de dólares que não pode ser interrompida ou prejudicada por fatores extrínsecos. A paixão clubística, em muitos momentos, é estimulada de forma irracional e irresponsável. Todos sabem da força social e econômica que o futebol representada no mundo atual. No entanto, transformar tudo isso em mais um motivo para estimular-se a violência é absurdo.
As pessoas que estão na minha faixa etária, lembram com saudade dos tempos em que podíamos frequentar os estádios sem a necessidade de dividir-se as torcidas. É preciso que se faça uma análise sincero e profunda para ver a partir de onde houve a transformação maligna que transformou o esporte bretão em um campo de guerra e de mortes.

Recife, 2014

sábado, 3 de maio de 2014

Não me escutes nostálgico a cantar


NÃO ME ESCUTES NOSTÁLGICO A CANTAR

Clóvis Campêlo

Diz o cronista Ruy Castro que qualquer assunto pode servir de mote para uma crônica. Até mesmo a falta de assunto, usada com maestria pelo cronista, pode ser útil. Afinal, a arte de falar muito e dizer muito pouco ou quase nada também é um direito do escrevinhador.
E foi assim, sem assunto, que comecei o presente texto. Confesso, porém, que isso às vezes isso também me assusta. Lembro de um personagem de Lima Barreto, cronista social, que se mata em plena redação por não conseguir escrever a sua cronica diária para o jornal onde trabalhava. Nada mais terrível para o escritor do que a constatação de que não consegue mais escrever.
Lembro também de que a prática constante da escrita pode fazer com que o starting do ato de escrever seja acionado com facilidade. O pesquisador Leonardo Dantas Silva é um desses que escreve diariamente, mesmo que o produto final desse exercício não seja aproveitado de imediato ou requeira um aprofundamento posterior maior. Historiador convicto, porém,a ele não interessam as ficções, mas sim a pesquisa pertinaz e científica, a comprovação devida dos fatos e histórias a serem contados. Daí a sua credibilidade e a justa fama alcançada.
Eu, contudo, prefiro a fantasia. Ou melhor, o uso puro e simples da memória que refaz a lembrança dos fatos ocorridos a medida em que o tempo passa. E, quando ela, a memória, mostra-se insuficiente, liberar a imaginação com as suas asas libidinosas de libélula. Nesse sentido, o passado próximo ou distante é sempre um manancial a ser utilizado.
O passado, aliás, já devidamente consumado, consumido e interpretado, não nos oferece mais o perigo da sobrevivência. E se a ele sobrevivemos, temos o mérito e o direito de narrar essa odisseia. Afinal, sempre será de responsabilidade dos vencedores e sobreviventes a obrigação e o direito de contar essa história. Aos perdedores que ficaram ao longo do caminho, as batatas! As rosas e os mortos não falam! Quando muito, a voz calada dos mortos, por uma questão de generosidade ou justiça imaginada, pode estar embutida na narrativa vitoriosa dos vivos. E nada mais do que isso.
Afinal, o coração e o mundo tem razões que a própria Razão desconhece. Fatores intrínsecos e nem sempre muito bem compreendidos é que movimentam a roleta das mudanças e do entendimento, além, é claro, dos interesses mesquinhos dos que podem interferir nesse rumo e não o fazem ou o fazem de maneira tendenciosa, o que é muito pior.
Se as águas inertes do passado não movem mais o moinho do mundo, embora possam servir de alimento aos poetas, são as águas incertas do futuro que trarão o porvir.
E nelas, espero que nunca me escutes nostálgico a cantar.

Recife, 2014

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Power to the people


POWER TO THE PEOPLE

Clóvis Campêlo

"Power to the people,
power to the people",
gritava o radinho de pilhas
enquanto você me beijava
e o seu beijo tinha
um gosto de goiaba.
Era engraçado,
mas era verdade
e a felicidade era
uma tarde de verão
na praia do Pina.
Power to the people,
meu bem,
seu beijo era
pura adrenalina.


Recife, 1985

quarta-feira, 30 de abril de 2014

O louco e o poeta


Fotografia de Diego Nigro/JC

O LOUCO E O POETA

Clóvis Campêlo

A cidade do Recife amanheceu consternada nessa segunda-feira. De madrugada, um maluco destruiu partes da escultura do poeta Ascenso Ferreira, situada no Cais da Alfândega. Dizem que em vida o poeta gostava de por ali passear nos fins de tarde, admirando o por do sol por trás do Capibaribe. Em função disso, o local foi escolhido para acolher a sua imagem.
Em qualquer cidade do mundo, é duro ser estátua, amigos. Nos anos 60, o compositor Erasmo Carlos já afirmava isso em uma de suas músicas. No caso do compositor paulista, o que lhe afligia eram os pombos na cabeça e os brotos passando incólumes ao seu lado. No caso do poeta pernambucano, o perigo veio de um louco solto pelas ruas, um lúmpen perdido nas noites recifenses.
Mas afinal o que o teria levado a cometer tamanha sandice? No seu delírio quixotesco de louco, a imagem poética daquele homenzarrão às margens do rio deve ter lhe sugerido um monstro a ser derrotado, um moinho de vento imponente a desafiar-lhe a insanidade.
Bastou-lhe uma pedra, um paralelepípedo proparoxítono, para enfrentar e derrotar o perigo imaginário. E sempre haverá uma pedra no caminho, amigos, para desestabilizar a inércia da vida ou da noite. Alguns poucos golpes e o vilão solitário desfigurou o rosto bonachão e pacato do poeta. Depois, mirou e atingiu as suas mãos de poeta, repletas dos versos danados e revolucionários do modernismo brasileiro. Inerte em seu sono de pedra, só restou ao bardo aguardar em silêncio as luzes do dia com a resignação dos feridos de morte. Mesmo desfigurado, porém, manteve-se de pé. Afinal, feito de ferro e pedra deve ter no íntimo a certeza do renascimento.
Ao louco vencedor, além dos louros da vitória no combate desigual, coube a glória de atravessar solene a ponte Maurício de Nassau, sem pedágios ou bois voadores a lhe incomodar a insanidade noturna. Talvez visasse um outro poeta logo adiante, uma outra imagem imponente situada sobre a ponte a contemplar eternamente os ares poéticos do encontro dos rios.
Se era essa a sua intenção, porém, não logrou êxito. Logo adiante foi detido por uma viatura policial. A próxima vítima estava a salvo. O seu corpo diminuto não seria sacrificado pela loucura gratuita do dom quixote urbano. Encerrava-se ali mais uma tragicomédia pós-moderna. E, loucuras a parte, com certeza, entre mortos e feridos, todos terão o direito de escapar. A imagem do poeta dos Palmares será reconstituída e deverá caber às autoridades competentes a responsabilidade pela proteção e tratamento adequados a serem dispensados ao meliante tresloucado.
Afinal, de poeta e de louco todos nós temos um pouco.

Recife, 2014

terça-feira, 29 de abril de 2014

Vai!


VAI!

Clóvis Campêlo

Vai que a juventude
dessa brisa
espanta
e nem um pouco
me afugenta
a dor.

Vai que a inquietude
dessa vida
é tanta
que nem um louco
lhe entende
a cor.

Vai que a negritude
dos teus olhos
é manta
que me acoberta
e aquece
de amor.

Vai que um dia
tudo se transforma
e se agiganta
e nós seremos
o sol a se por.

Vai!

Recife, 2008

sábado, 26 de abril de 2014

No tempo das mariquitas


NO TEMPO DAS MARIQUITAS

Clóvis Campêlo

Havia uma época em que as mariquitas invadiam as locas das pedras da praia do Pina. Eram uns peixinhos vermelhos, quase que inadequados para o consumo humano, por conta do excesso de espinhas. Nas marés baixas, quando o mar secava e as pedras ficavam expostas, nós os pescávamos com facilidades nas pequenas poças de água que se formavam sobre os corais.
Naquela época o antigo emissário que havia, levando os dejetos coletados da estação sanitária da Cabanga, o famoso cano do Pina, atraia uma grande quantidade de peixes. Pescar ali, era fácil. Tanto se pescava com varas de anzóis, com de rede ou de mergulho. Até mesmo a pesca predatória com bombas ainda se praticava. Perigosíssima e absurda, pois tanto servia para matar um número excessivo de peixes, a maioria dos quais não seriam utilizadas pelos pescadores, como para estourar os tímpanos de algum mergulhador incauto que estivesse por perto na hora da explosão.
Na verdade o cano do Pina funcionou até o início dos anos 80, quando foi desativado pela Compesa. Em 2004, por ordem da CPRH, o cano foi definitivamente retirado pela Prefeitura do Recife, quando da revitalização da praia. A desativação do cano diminuiu a poluição das águas mas também afastou os peixes e outros animais marinhos (siris, moreias, guajás, tatuís, etc.) do local, inclusive as mariquitas.
Um outro fator de afastamento da fauna marinha foi o assoreamento da praia, notadamente no trecho que vai do paredão de Brasília Teimosa até a Rua Ondina, no Pina. Esse processo foi tão acentuado e acelerado nos últimos anos, que os barcos de pesca que ancoravam na praia em frente à sede da Colonia Z-1, tiveram que ser deslocados para a Bacia do Pina.
Assim, fatores naturais influenciaram na mudança da rotina de trabalho dos pescadores e em alguns hábitos culturais e religiosos, como a procissão marítima de São Pedro. Realizada todos os anos no dia 29 de junho, passou a ter uma parte terrestre e outra marítima, haja vista que o andor com o santo, saindo da sede da Colônia Z-1, passou a atravessar as ruas locais até alcançar os barcos no outro lado do bairro.
Naquela época, no tempo das mariquitas, a fartura de substâncias orgânicas eram tão grande, que até alguns tubarões eram atraídos em busca dos peixes que compunham a sua cadeia alimentar. Quem pescava de mergulho, como o meu irmão Carlinhos, sabia disso. A partir da segunda faixa dos corais (existiam três faixas de corais separando os canais navegáveis, quando a maré estava baixa) era provável dar de cara com algum daqueles seres cartilaginosos, mas que raramente atacavam. A fartura de alimentos disponíveis os tornavam dispostos a conviver pacificamente com os mergulhares, diferentemente de hoje quando atacam banhistas até próximo da beira-mar.
No tempo das mariquitas, aliás, ainda não havia ocorrido no bairro a explosão demográfica provocada pela aceleração da especulação imobiliária. O Pina, com a sua praia tranquila, ainda era um bairro bucólico. Hoje, derrubam-se quarteirões inteiros de casas e pequenos prédios para a construção de espigões gigantescos e modernos. Faz tempo que as antigas casas de banho, onde se alugavam roupas (calções e maiôs) para o desfrute da praia, acabaram-se. Sumiram junto com as mariquitas.

Recife, 2014

quinta-feira, 24 de abril de 2014

O peru de Obama e as viúvas do Ipase


O PERU DE OBAMA E AS VIÙVAS DO IPASE

Clóvis Campêlo

Todos se lembram: o primeiro presidente norte americano negro perdoôu o peru branco. O nome do bicho: Courage. Veio da Carolina do Norte, onde nasceu, numa fazenda especialista em criar perus, para enriquecer o jantar do Dia de Ação de Graças do presidente.
O peru anistiado, porém, não viverá o resto dos seus dias na Casa Branca. Foi encaminhado para a Disneylândia, onde, com certeza, será transformado em mais uma atração turística.
Consta que essa história de presentear o presidente com um peru vem desde o presidente Eisenhower, em 1953. Transformou-se numa tradição. Diz ainda a lenda que o primeiro presidente a poupar o peru presenteado foi John Kennedy, nos início dos anos 60, quando o sonho dourado americano ainda não se desvanecera.
Enfim, histórias da Carochinha do Norte que nós, brasileiros e americanos do Sul, desde a mais tenra idade, escutamos.
Mas, o que teria o peru americano de Obama a ver com as saudosas viúvas do IPASE?
Lembro que nos anos 60, quando eu ainda era um menino e jogava bola nas areias da praia do Pina, era costume do meu pai, em dezembro, levar para casa os perus que comprava ou mesmo recebia de presente das viuvinhas que atendia no extinto IPASE. Aqueles pobres e comprometedores perus, já que dona Tereza, minha mãe, sempre via naquela benevolência uma possibilidade de traquinagem extra conjugal, nunca foram perdoados. Todos os dias, depois do almoço, eu e meu irmão, sentávamos no batente do terraço que havia na cozinha para cevar os perus. Tudo o que sobrava das refeições do dia e da véspera era “enriquecido” com água e farinha de mandioca e literalmente enfiado garganta a dentro dos animais, sem chance nenhuma de defesa ou contestação. Aos perus violentados, só restava a obrigação de digerir e engordar.
Como naquela época ainda não havia os aleijões transgênicos e congelados dos chesters, quando o Natal chegava os perus, com seus fígados engordados pela alimentação forçada, eram sacrificados e colocados na mesa para o deleite da família e dos vizinhos que sempre participavam, intercambiando quitutes e votos de felicidades.
Lembro disso sem nenhum sentimento de culpa. Achava e ainda acho legítimo todo aquele ritual que unia a família, terminava por dissipar as desconfianças maternas e garantia uma ceia de Natal decente e condigna.
Eramos felizes e não sabíamos que o futuro nos traria costumes diferentes e saudades de coisas simples que pareciam ser eternas.
Hoje já não existem quintais, perus a serem engordados ou mesmo vizinhos amigos e participativos, ávidos para demonstrarem a afeição e o o respeito que alimentavam aquela relação de amizade e boa convivência.
Com toda sinceridade, sinto falta disso.


Recife, dez/2009

sábado, 19 de abril de 2014

Como é gostoso o meu português


COMO É GOSTOSO O MEU PORTUGUÊS

Clóvis Campêlo

Existe hoje, na língua portuguesa falada e escrita no Brasil, uma grande confusão quanto ao uso correto das palavras perda e perca.
A primeira, segundo o aurélio que me acompanha há décadas, trata-se de um substantivo feminino, que significa ato ou efeito de perder, privação de alguma coisa que se possuía, privação da presença de alguém, extravio, sumiço, prejuízos sofridos pelo credor em consequência da diminuição do seu patrimônio, ou mesmo morte, desaparecimento ou falecimento.
A segunda, ainda com base na mesma fonte, nomeia um peixe acantopterígeo, de água doce, e de carne muito saborosa. Mas, na linguagem popular e coloquial também pode significar perda, prejuízo ou dano.
Ao mesmo tempo, ainda, perca também pode se referir a uma flexão do verbo perder, no tempo condicional.
Ou seja, talvez eu me perca nesse texto ao achar que seria uma grande perda não perceber a possibilidades dessas duas nuances.
A rigor, porém, entendo que dentro da utilização da norma culta o termo perda seja mais bem indicado na construção frasal. Entendo, no entanto, que sendo a língua uma entidade viva e que se transforma ao longo do tempo no sentido de facilitar a comunicação entre as pessoas e as instituições, nada impeça que o segundo termo seja usado sem constrangimentos. Afinal, a língua é do povo como o céu é dos satélites e dos intelsates.
E foi assim, submetido aos ditamos da fala popular, misturando os dialetos locais com o latim vulgar disseminado pelos romanos no continente europeu, que a língua portuguesa, a última flor do Lácio, nasceu. E foi assim que ela também se modificou, depois de formada, assimilando novas palavras e expressões nos lugares e países para onde foi levada pelos portugueses conquistadores da Idade Média.
E ainda é assim, nos tempos de hoje, que ela continua a se transformar e assimilar novas expressões criadas por quem a fala e pelas novas necessidades oriundas das invenções e transformações do mundo moderno.

Recife, 2014

sábado, 12 de abril de 2014

Morrer deve ser tão frio


MORRER DEVE SER TÃO FRIO

Clóvis Campêlo

Morrer deve ser tão frio,
solidão no cais do porto,
como as águas de um rio
desaguando num mar morto.

Fechando o início de um cio,
findando um trajeto torto,
alívio, talvez, desconfio,
depois, talvez, desconforto.

Talvez, quem sabe, um fio
cortando uma vida, aborto;
talvez, quem sabe, um envio,

o exílio de um rei deposto.
Morrer deve ser tão frio,
solidão no cais do porto.

Recife, 1994

quinta-feira, 10 de abril de 2014

O caminho do poeta


O CAMINHO DO POETA

Clóvis Campêlo

Não saberia sorrir
cruzando as águas do rio,
lembrando que o poeta
por ali passou um dia.

Talvez o seu existir,
por falta de algum brio,
por medo de alguma meta,
não tenha sido alegria.

Talvez não tenha sentido
o azul claro do céu,
a brisa morna do mar,
os sons que cantam a vida;

talvez tenha preferido
da tristeza todo o véu,
o frio da noite a reinar,
a dor sangrando a ferida.

Recife, 2010

terça-feira, 8 de abril de 2014

Um poeta kami-quase


UM POETA KAMI-QUASE

Clóvis Campêlo

Sou daqueles que ainda gostam de consultar o dicionário. Mesmo em tempos de google e wikipédia, que nada mais são do que dicionários transvestidos de modernidade. O dicionário é uma das bússolas do escritor e dos aprendizes de poeta. Assim, folheio o meu velho aurélio, companheiro de décadas, em busca da palavra uivo, a qual ele assim define: voz lamentosa de diversos animais quando parecem chorar, grito agudo.
A palavra, eu a encontrei no texto Aos Pariceiros dos Anos 80 (um uivo recifense) do livro Poemas Diversos, do poeta pernambucano Valmir Jordão. Desnecessário dizer que a primeira correlação feita por mim foi com o poema O Uivo, de Allen Gisberg. Pois se o uivo americano dos anos 50 serviu (e ainda serve) como roteiro para se compreender a cultura beat em confronto com o reacionarismo americano daqueles anos, o longo poema de Valmir Jordão traça um perfil completo dos poetas marginais recifenses dos anos 80 e da sua “contracultura” em confronto com a obtusidade da província naquelas eras.
Não o conheci naquela época, porém. Dele me aproximei no começo dos anos 90, quando eu integrava a direção do Sindicato dos Previdenciários de Pernambuco e ele fazia parte de um pelotão de militantes voluntários, sempre a postos em busca de uma revolução que nunca veio. Para mim, rapaz de boa família, respeitador e politicamente correto, ele representava a força caótica do lúmpen, que precisava ser canalizada para a transformação social final. Como de poeta e de louco, ele sempre teve um pouco, atraia-me e me assustava ao mesmo tempo.
De lá para cá, mudei eu, mudou o movimento sindical, que se profissionalizou e deixou o voluntarismo de lado, e talvez também tenha mudado o poeta. Assim, o reencontro no Paço Alfândega, no Recife, de livros em punho, vendendo-os num corpo-a-corpo ingrato. Essa é e sempre foi a sua vida: escrever, militar, permitir-se a resistência. Editar seus livros e vendê-los sempre me pareceu uma tarefa árdua e interminável, um trabalho de Sísifo, mas que aparentemente lhe alimenta a resistência física e ideológica. Seus poemas são recheados desse material questionador e crítico, que traz nas entrelinhas uma nova e inviável proposta cósmica. Instigante e quixotesco.
Em alguns poemas mais recentes, entretanto, mostra-se o poeta mais ameno e, de certo modo, mais romântico. Poema para Clara, por exemplo, é um deles. Não só pela forma arcaica do soneto por ele utilizada, mas por algumas construções frasais inéditas e pelas metáforas diferenciadas. Criativamente, o poeta inquieta-se mais uma vez e sem perder a essência da sua verve, permite-se caminhar por caminhos mais suaves emocionalmente.
No hai-kai Da História, essa minha desconfiança inicial confirma-se nos versos novos da mudança: “revolução? esqueça / chega de afiar guilhotinas / e perder a cabeça.”
Em outro hai-kai, Dos Poetas, a confirmação do insighting e da disposição para talvez seguir caminhos inusitados ditados pela nova consciência: “poesia? é questão de fé / torna-se um Sidarta / ou um São Tomé.”
Os seus textos confirmam: o bardo sobreviveu a si mesmo e às suas convicções ideológicas. Aguardemos, assim, quais serão os novos rumos do poeta kami-quase.

Recife, 2014

sábado, 5 de abril de 2014

Salve Olinda, eternamente linda!


SALVE OLINDA, ETERNAMENTE LINDA!

Clóvis Campêlo

Sempre te vi e sempre te amei, Olinda!
Sempre me vi atraído por tuas ladeiras íngremes, cobertas de pedras portuguesas!
Sempre adorei olhar as tuas varandas coloniais, onde o passado se debruça para ver o futuro chegar!
Para mim pouca importa o teu título pomposo de Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade.
Sempre te vi altaneira, olhando com desdém para a planície onde o Recife insistiu em se plantar.
Sempre curti os teus hippies fedorentos que insistem em negar a ordem e o progresso.
A ti, ofereço o espanto dos meus olhos, minha imagem cansada, quase sexagenária, que se alimenta do teu ar salitroso.
Oh Olinda, eternamente linda, que bela situação a tua, erguida sobre sete colinas.
Quanta fé me irradia o teu carnaval profano e o silêncio profundo das tuas igrejas centenárias.
A ti, ofereço as minhas mãos calejadas de uma poesia inútil.
A ti, ofereço as cicatrizes das minhas retinas sensibilizadas com a tua eterna beleza.
Salve o verde dos teus mares, o azul dos teus céus, o vermelho do teu sangue libertário.
Salve a ti, Olinda eternamente linda!
Recife, 2011

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Borboleta


BORBOLETA

Clóvis Campêlo

Borboleta:
solta, livre, leve.
Quem se atreve?

Recife, 2007

terça-feira, 1 de abril de 2014

Uma poesia sem angústias


UMA POESIA SEM ANGÚSTIAS

Clóvis Campêlo

Dizem que as amizades nascidas virtuais são como amor de carnaval e logo se acabam. Mas, não sei bem se é assim. Na internet, tenho conhecido pessoas extraordinárias e que conseguem mexer comigo e com a minha maneira de ser. Uma delas, foi a poetisa mineira Elane Tomich.
Libriana, nascida em Belo Horizonte no dia 9 de outubro (mesmo dia em que nasceu o ex-beatle John Lennon), tem como qualidade latente a crença de que dias melhores sempre virão. O amanhã sempre lhe será melhor e os problemas possíveis servirão cada vez mais para exercitar-lhe a capacidade de sobrevivência. Isso nunca me foi dito por ela diretamente, mas reflete-se com intensidade nas suas postagens facebookianas e nos seus textos e poemas.
Acaba de lançar o livro “Véspera de mim”, do qual me foi enviado gentilmente um exemplar. Dele me sirvo para sedimentar os meus pontos de vista sobre a sua pessoa e a sua obra, certificando-me assim do que a minha capacidade de observação e a minha intuição já me indicavam.
Nos versos do poema que dá nome ao livro, por exemplo, já se anuncia esse libelo esperançoso:

“Hoje é véspera de mim. / Amanhã, quando amanhecer / Terei um filho que verei crescer / Serei para sempre muito mais que assim / E vestirei meu contentamento / Passado a limpo por forte tormento / E em grande orgia de despojamento / Será queimado o meu testamento”.

Nada mais autobiográfico do que a estrofe acima. Talvez por isso, por conta desse otimismo desenfreado, em um mundo cada vez mais dominado pelo receio do futuro, o seu sorriso sempre franco e aberto, a sua expressão de menina feliz, mesmo já entrando na fase madura da vida, ao lado dos filhos e netos.
E esse é o seu canto de amor, de esperança, de fé e de credo, que suplanta qualquer ideologia possível para exaurir-se em energia transformadora, em energia do bem. Mostra-se a poetisa acima do bem e do mal, não em delírio inútil e desvairado, mas na sua capacidade de interpretar positivamente todas as nuances da vida, todas as alegrias e falsetas que lhe são servidas (e a todos nós outros, humanos) pela existência. O que a diferencia de outros seres e pessoas, na vida e na poesia, é essa disposição transformadora e de superação. A sua música sempre nos traz latente uma nova mensagem de esperança.
No poema “Ainda que seja cedo”, mais uma demonstração dessa sua capacidade de simplesmente ser feliz:

“Ainda que seja cedo / que o sol desbrilhe por medo / atrás de uma nuvem de chuva / em ameaça de morrer / ao se jogar do telhado.
…..
Nessa noite encompridada / pela luz que emudeceu / nosso amor brinca sem medo / ainda que seja cedo!”

É tão intensa a alegria que existe nos textos de Elane Tomich que uma pequena crônica como essa é insuficiente para a explicitar. Fica latente em nós, a vontade de prolongar essa análise em outros comentários e artigos.

Recife, 2014

sábado, 29 de março de 2014

Um pouco de redundância, por favor!


UM POUCO DE REDUNDÂNCIA, POR FAVOR!

Clóvis Campêlo

Somos seres miméticos. Aprendemos a viver assim. Repetimos gestos e ideias à exaustão. Do beabá inicial aos discursos filosóficos transcendentais, somos repetitivos e raciocinamos em bloco. A redundância nos redime.
Por isso, as atitudes diferenciadas tendem a ser punidas e eliminadas. Constituem-se em ameaça à continuidade das coisas. Até no jargão futebolístico, existe a máxima de que em time que está ganhando não se mexe. Basta repetir-se e pronto, o sucesso está garantido.
Exercitar o senso crítico, portanto, não é nada fácil no mar de mesmices em que vivemos. Afinal, para que nadar contra a corrente se o final sempre é o mesmo? Só os mais inquietos, patologicamente inquietos, aventuram-se a tanto.
No entanto, se a mesmice cansa e bitola, o excesso de novas informações também pode travar os 10% utilizados pela nossa cabeça animal. A novidade deve sempre ser servida em doses homeopáticas, haja visto que o excesso deixa de ser remédio e transforma-se em veneno. E, se não nos matar, vai jogar-nos no isolamento temporal, do qual, em alguns casos, só se consegue sair depois da morte. Para quem não acredita em reencarnações, aliás, o pós morte não serve para nada. Finda a vida, findo o mundo, finda as palavras. O morto não pensa, não fala, não discute mais e nem externa ideias ou ideais. O morto apenas se decompõe.
Aos vivos, portanto, cabe a continuidade e a comunicatividade do mundo. E tome redundâncias! Exercitar o senso crítico em relação a si mesmo e aos cosmos, no mundo dos vivos, não é nada fácil, embora extremamente necessário na maioria das vezes. Pensamos, logo existimos! Questionamos, logo resistimos! Até quando, porém, acho que nem mesmo Deus sabe!
Como, apesar de só utilizar 10% da sua cabeça animal, a espécie humana conseguiu evoluir e sofisticar o ato de raciocinar, vive a contradição de ter de alimentar a redundância para sobreviver nos níveis superiores da linguagem e de ter que exercitar novas formas de informação para transgredir e evoluir. Assim caminha e sempre caminhou a humanidade ao longo do tempo.
O homem sábio, portanto, tenta exercitar o equilíbrio na vida, na linguagem e nas informações. Hora tende para um determinado lado, hora para o outro, mas sempre com a consciência de que tenta evoluir e ser entendido ao mesmo tempo. De nada adianta o hermetismo ou o ludismo das invenções mirabolantes se o resultado final for o desentendimento.
Os inventores e artistas que tendem por esse caminho correm o risco de morrerem incompreendidos e só serem decifrados e decodificados pelas gerações futuras e posteriores, quando a contravenção se transformar em regra e consolidar-se como matéria assimilada e incorporada ao modo de vida dos nossos sucessores.
Aos afobados futuristas, portanto, eu peço um pouco de redundância, por favor!

Recife, 2014

terça-feira, 25 de março de 2014

Pedaços


PEDAÇOS

Clóvis Campêlo

Há tanto tempo me perco,
há tanto tempo me acho,
nem mesmo sei dos meus medos,
nem onde estão meus pedaços.



Recife, 2006

sábado, 22 de março de 2014

Torto


TORTO

Clóvis Campêlo

Quando a morte a ti trair
e enganar-te a inteligência,
não penses pedir clemência,
nem peças para sair.

Vista-se com domingueira,
enfeite o leito com flores,
disfarce com mil odores
a hora que é derradeira.

No entanto, se alguém em "ais"
liberta gritos primais
em ânsias de despedida,

mostre-lhe um riso morto
- o certo se escreve torto -
e apenas é o fim da vida!

Recife, 1991