sábado, 30 de junho de 2012

Angústia: aspectos conteudísticos e formais



ANGÚSTIA: ASPECTOS CONTEUDÍSTICOS E FORMAIS

Clóvis Campêlo

Embora tenha sido um homem de posições políticas bem definidas, Graciliano Ramos em nenhum momento da sua vida literária transformou as obras de ficção por ele escritas em manifestos panfletários.
Tal atitude, no entanto, não impede aos leitores de visualizar, por trás desse aparente despojamento, o contexto social e político não explicitado onde as histórias se dão.
Se, no aspecto conteudístico, os romances do escritor alagoano aproximam-se das características regionalistas que alimentaram uma boa parte dos autores da sua geração, no aspecto estrutural, ao se submeterem a certos procedimentos técnicos, aproximam-se também da corrente subjetivista que marcou a nossa ficção a partir do Modernismo.
Nesse sentido, Angústia é, em suas obras, a que melhor reflete essa feliz síntese entre as duas tendências que caracterizaram a nossa moderna ficção, o que faz do texto de Graciliano algo ao mesmo tempo local e cosmopolita.
Partamos, porém, para o texto em busca dos elementos que justifiquem estas afirmações iniciais e que sirvam para pautar a nossa análise.
Narrador protagonista, é através de Luís da Silva que o universo do romance para nós se desvenda. Do mesmo modo, todos os outros personagens nos são mostrados sob a ótica parcial e distorcida do narrador, o que levou o crítico Álvaro Lins a afirmar que Marina e Julião Tavares existem apenas para que o protagonista se atormente e cometa o seu crime.
Homem solitário, Luís da Silva tem na infância as raízes da sua solidão. Descendente de uma família aristocrática rural em decadência, cujos dias de glória não alcançou, sofre na pele as conseqüências dessa derrocada. Perdida a fazenda, após a morte do avô, parte com o pai para a vila onde este se estabelece como comerciante. Após a morte do pai, ainda adolescente, vê os credores se apossarem do pequeno patrimônio de que a família ainda era possuidora. A essa altura do relato já algumas particularidades nos chamam a atenção: a ausência total de referências à figura materna do protagonista e a visão crítica do protagonista em relação às figuras do avô e do pai. Ora, sabemos, de acordo com os pressupostos freudianos, onde bebeu a corrente subjetivista e introspectiva da nossa ficção moderna, que na construção do arcabouço psicológico do indivíduo, a infância, notadamente a primeira infância, constitui-se em período de grande importância, onde as figuras dos pais compõem os primeiros referenciais. Por outro lado, esse é um mundo em suposto equilíbrio e segurança. Não é isso, no entanto, o que se passa com Luís da Silva e que irá marcá-lo de maneira definitiva.
A busca da cidade grande é a solução encontrada pelo protagonista para empreender a luta pela sobrevivência. Sociologicamente, tal movimento – da zona rural para o perímetro urbano de um grande centro, da aristocracia agrária decadente para a classe média metropolitana – mostra um deslocamento do centro do poder econômico de uma classe para outra, de um espaço social para outro e reflete o momento de transformação por que passava o nosso país no primeiro quarto do século XX. A derrocada da aristocracia rural açucareira corresponde à ascensão da burguesia urbana mercantil da qual Julião Tavares é o lídimo representante. Podemos considerar que aí se encontra um dos aspectos da aversão sentida pelo protagonista em relação a este último, muito embora esse processo de transferência se dê de maneira inconsciente.
Se, do ponto de vista sociológico, Julião Tavares representa a burguesia dominante e bem sucedida, existe um outro personagem, “seu” Ivo, que representa o lupem-proletariado, a escória humana produzida por uma sociedade dividida em classes. Situando-se em um pólo oposto ao de Julião Tavares, “seu” Ivo também difere de Luís da Silva por não pertencer ao mesmo segmento social - a classe média. Daí não causar nenhum estorvo ao protagonista que sabe ter sobre ele uma certa ascendência (“Um sujeito inútil, sujo, descontente, remendado, faminto”). Apático, vivendo de favores e de pequenos furtos, é através dele que o instrumento do crime – um pedaço de corda – chega às mãos do narrador. Fica latente, desse modo, no assassinato de Julião Tavares, a existência de todo um simbolismo de justiça social que transcende a visão esquizofrênica e restritiva do narrador para mostra-se ao leitor mais atento.
Por outro lado, nas lembranças de Luís da Silva estão “seu” Evaristo e Cirilo de Engrácia, personagens da sua infância, ambos enforcados e vítimas de uma estrutura social implacável. Do mesmo modo, os homens que o menino Luís via indo para a prisão também estavam amarrados com cordas. Assim, tanto no passado quanto no presente, a justiça se faz com cordas. A idéia de estrangular Julião Tavares passa-lhe pela cabeça ao perceber o seu envolvimento com Marina (“Empurrei a porta brutalmente, o coração estalando de raiva, e fiquei em pé diante de Julião Tavares, sentindo um desejo enorme de apertar-lhe as goelas”). Consideremos também que o narrador, no estado esquizóide em que vive, apresenta impulsos compulsivos (“Lavo as mãos uma infinidade de vezes por dia, lavo as canetas antes de escrever, tenho horror às apresentações, aos cumprimentos, em que é necessário apertar a mão que não sei onde andou, a mão que meteu os dedos no nariz ou mexeu nas coxas de qualquer Marina. Preciso de muita água e sabão”).
Ora, o presente de “seu” Ivo, que o narrador passa a levar consigo no bolso das calças, somado à revolta crescente contra Julião Tavares, principalmente após a descoberta da gravidez de Marina, vão fazendo com que a idéia do assassinato se consolide em seu pensamento. A morte de Julião Tavares, no entanto, não será apenas um ato impensado. Será também, como vimos anteriormente, uma atitude de justiça social na concepção equivocada do narrador. A ausência de sentimentos de culpa, após a realização do crime, dá-nos essa confirmação.
Voltemos, porém, para Julião Tavares. É interessante observarmos pela descrição que dele faz Luís da Silva (“Era um sujeito gordo, vermelho, risonho, patriota, falador e escrevedor”) que Julião Tavares lhe é justamente o oposto, tanto do ponto de vista físico quanto psicológico. Em relação aos personagens, aliás, cabe observamos que, sob a ótica de Luís da Silva, demonstram sempre aspectos negativos. Emocionalmente são todos desajustados, vivendo uma vida que não é celebrada. Embora Julião Tavares fisicamente não fuja a essa caracterização, psicologicamente diverge dos demais. É o único que se lança à vida com a disposição de vivê-la e de a usufruir, talvez respaldado pela sua condição de burguês bem sucedido. Filho de família rica, reacionário e católico, Julião de imediato ganha a antipatia do protagonista que, admirador de idéias revolucionárias, autodefine-se como “um molambo que a cidade puiu demais e sujou”. Nessa tensão entre o real e o imaginário, alimenta-se o processo neurótico do narrador e seria absolutamente simplório atribuirmos aos ciúmes de Luís da Silva o assassinato de Julião Tavares. Nesse ato compulsivo (Lembremo-nos que no capítulo inicial o protagonista diz que dinheiro e propriedade são coisas que lhe despertam sentimentos de mortandade e destruição), ao matar Julião Tavares estrangulado o narrador simbolicamente tenta destruir um mundo que lhe é hostil e insatisfatório, responsável pelo seu sofrimento e pelo sofrimento de diversas outras pessoas (Marina, dona Adélia, “seu” Ivo, as prostitutas da Rua da Lama, etc.) e que é representado por Julião Tavares. Procura um equilíbrio que supõe haver existido anteriormente, embora não possamos localizá-lo em suas recordações. O que o leva ao desespero, entretanto, é perceber que após o ato criminoso o mundo continua o mesmo, havendo sido inútil o seu gesto. Restar-lhe-ia, então, o suicídio como última forma de contestação, o que não ocorre, ao menos no tempo da narrativa, embora chegue a ser considerado pelo personagem (“Uma viagem, embriaguez, suicídio...”). Nesse complexo jogo de forças, portanto, a sedução de Marina por Julião Tavares teria sido apenas o último ingrediente a catalisar o desfecho fatal.
Voltado para dentro de si mesmo, recriando o mundo externo a partir das suas sensações, Luís da Silva faz da sua narrativa um texto introspectivo. Não é o mundo visto o que o leva a ter tal concepção cósmica, mas sim o que imagina ter visto. São sentimentos complexos e fora do comum que o levam a afastar-se da realidade até desaguar no mais completo delírio. Como bem observou o crítico Álvaro Lins, Luís da Silva vive da sua memória e da sua imaginação. A memória, aliás, chega a ser retocada pela imaginação como o próprio personagem admite (“Saíram do entorpecimento recordações que a imaginação completou”). A necessidade de reorganizar esse mundo interior, da qual o narrador em vários momentos tem consciência, leva-o a se distanciar cada vez mais da realidade que, contraditoriamente, deveria ser tomada como referência. Mas como aceitá-la se a ela o narrador atribui os seus sofrimentos? É desse emaranhado de sentimentos introspectivos (negação do presente, retorno ao passado, uso da imaginação) que nasce a força da narrativa.
No que se refere aos aspectos formais, ao utilizar-se da narração na primeira pessoa, com um narrador protagonista (autodiegético), o autor repete um artifício já utilizado em Caetés e São Bernardo, os dois romances que antecedem Angústia. Difere este do primeiro, no entanto, pela abstração temporal e pela utilização constante do espaço não-dimensional, onde se dão as recordações e os delírios de Luís da Silva. Se em Caetés temos uma utilização mais convencional dos elementos tempo e espaço, o que o leva a ser considerado por vários críticos como um romance fraco e sem grandes pretensões, em Angústia tais elementos são diluídos levando o leitor a se perder, em vários momentos, entregue aos pensamentos desconexos do protagonista. Conseqüentemente, diferindo da maioria dos autores da Geração de 30 que buscaram nos elementos externos aos personagens os fatores antagônicos fortalecedores da narrativa, Graciliano Ramos, tanto em São Bernardo quanto em Angústia, situa a tensão do texto no conflito interior vivido pelo narrador. Nesse sentido, Luís da Silva é um personagem dinâmico que evolui vertiginosamente em direção ao seu destino, forçando o autor a ter um tratamento mais estático em relação aos demais personagens.
No que tange ao foco narrativo (a posição tomada pelo narrador para contar a história), se na tríade inicial – Caetés, São Bernardo e Angústia – temos narradores protagonistas, mas de focalização externa (em relação aos demais personagens, já que a narração é na primeira pessoa), restritiva e fixa, em Vidas Secas temos um narrador que não participa como agente da história narrada, mas que apresenta uma focalização interna, onisciente e variável, o que nos leva a supor que, esgotados nos primeiros romances os processos de narração autodiegética, voltava-se o escritor para a narrativa ficcional na terceira pessoa e para as obras memorialistas em busca de novas formas de expressão.
Nesse sentido, se Angústia, conforme o parecer de Alfredo Bosi, “foi a experiência mais moderna, e até certo ponto marginal, de Graciliano”, não é de se estranhar que, após atingir tal limiar, estabelecesse o autor a necessidade de explorar novas estruturas.


Recife, 1993

terça-feira, 26 de junho de 2012

Efemérides


EFEMÉRIDES

Clóvis Campêlo

Ninguém completa sessenta anos impunemente. Justo ou não, sempre se paga um preço pela vida longa, pela superação de determinadas marcas temporais.
Bernard Shaw, o escritor inglês que morreu aos 94 anos, dizia que na velhice sentia-se assediado pela solidão e pela saudade dos contemporâneos que já se tinham ido. Essa é uma verdade verdadeira e um dos preços a serem pagos por quem alcança a longevidade.
Por outro lado, dona Dita, a minha sogra, no alto dos seus 80 anos bem vividos, aceita com tranquilidade o passar dos anos e diz que só tem uma saída para quem não quer envelhecer: é morrer jovem.
Portanto, camaradas, pelo bem ou pelo mal só nos resta viver e tentar fazer dessa vivência um caminho de satisfação e felicidade.
Vou ao Google, o novo pai dos burros, e descubro que, para nós, brasileiros, o dia 2 de dezembro é o Dia do Samba. Maravilha. Sei que estou bem acompanhado. Descubro também, dentro da minha ignorância histórica, que no dia 2 de dezembro de 1825, na cidade do Rio de Janeiro, nasceu Pedro de Alcântara João Carlos Leopoldo Salvador Bibiano Francisco Xavier de Paula Leocádia Miguel Gabriel Rafael Gonzaga, sétimo filho de Dom Pedro I e da arquiduqesa Dona Leopoldina de Áustria, e que depois viria a ser coroado como Dom Pedro II, o último Imperador do Brasil. Descubro ainda que, um pouco mais tarde, em 1889, nesse mesmo dia dia 2 de dezembro, nasceram a pintora brasileira Anita Mafaldi, a cantora lírica americana Maria Callas (1923), o ex-nadador brasileiro Gustavo Borges (1972) e a estrela pop americana Britney Spears (1981). Tudo gente boa, da melhor qualidade e sagitarianos, como eu.
Mas, também descubro o dia 2 de dezembro trouxe para alguns a marca da partida, da despedida desse mundo de Deus. Em 1552, faleceu São Francisco Xavier, missionário espanhol co-fundador da Companhia de Jesus, além de Pablo Escobar, narcotraficante colombiano, em 1993, e Luiz Lombardi Netto, em 2009, locutor nunca visto e que durante anos emprestou a sua voz ao programa Sílvio Santos.
Descubro ainda, nessa minha incursão dezembrina, que no dia 2 comemora-se o aniversário da cidade de Araçatuba, em São Paulo, onde hoje vive o meu amigo Everi Rudinei Carrara, poeta, músico e produtor cultural.
Descubro também que o dia 2 de dezembro é dedicado a Santa Bibiana, que viveu em Roma, no século IV, e foi morta à chibatadas por recusar-se a se prostituir.
Finalmente, descubro que na mitologia hindu, o dia 2 de dezembro é dedicado à Festa de Shiva, deus da dança, do movimento e da transformação.
Encerro afirmando que Sagitário é o nono signo astrológico do zodíaco, situado entre Escorpião e Capricórnio. É representado pela figura do arqueiro Quíron, que era um centauro. Sua flecha está constantemente apontada para o corpo do Escorpião, como uma vingança pela morte de Órion, o gigante caçador.

Recife, 02/12/2011

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Mistério



MISTÉRIO

Clóvis Campêlo

Meus males os atribui à chuva
quando interessava-me ter respostas,
e minha nudez sobre a mesa posta
era mão aflita a procurar a luva.

Meus medos os atribui ao vento
quando em busca de um porto mais seguro
mantinha a vida como o meu futuro,
singrando mares de puro tormento.

Porém, se foi a chuva com o medo,
o vento dissipou o mal bem cedo,
hoje navego em outro hemisfério,

levado pela força da paixão,
movido pelo instinto da razão
e perseguindo também o mistério.

Recife, 1991

quarta-feira, 20 de junho de 2012

O Forte do Pau Amarelo



Fotografias de Clóvis Campêlo/1990

O FORTE DO PAU AMARELO

Clóvis Campêlo

Nos anos 80, quando morava em Olinda e meus filhos eram pequenos, costumava ir com a família fazer pic-nic na praia de Pau Amarelo, ao lado do Forte. Na época, era um lugar aprazível, sem construções clandestinas. Escolhíamos uma árvore qualquer, na beira da praia, estendíamos a toalha e fazíamos a festa. As crianças adoravam aqueles momentos de lazer puro e barato. Uma verdadeira curtição.
Muitos antes de nós, porém, no dia 14 de fevereiro de 1630, segundo os historiadores, ali chegaram os holandeses da Companhia Neerlandesa das Índias Ocidentais. Sob o comando do almirante Hendrick Corneliszoon Lonck, ancoraram naquele local, no litoral norte de Pernambuco, com um contigente de 7.280 homens e 65 embarcações. Não vieram em busca de lazer barato, mas sim atrás dos lucros do açúcar aqui produzido. Com essa intenção, marcharam por terra e conquistaram Olinda e o Recife. Mas, essa história, todos nós já sabemos.
Embora os holandeses invasores tivessem entrado em Pernambuco pelo local, só 73 anos depois, em 15 de setembro de 1703, é que foi emitida uma Carta Régia ordenando a construção de um forte que servisse de defesa e oferecesse resistência a outras invasões.
O projeto ficou a cargo do engenheiro Luís Francisco Pimentel. A planta do prédio a ser construído foi por ele desenhada em aquarela e hoje se encontra arquivada no Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa, Portugal. Em 1707, porém, o infeliz engenheiro morria afogado nas águas do Rio Doce. A fatalidade retardou o início da construção que só se iniciaria em 1719. A conclusão do Forte de Nossa senhora dos Prazeres de Pau Amarelo, seu nome oficial, só aconteceria em 1738.
Segundo a historiadora Semira Adler Vainscher, em texto publicado no sítio da Fundação Joaquim Nabuco, em 1801 a fortaleza já possuia 12 canhões de calibre10 e 40. Em 1817, esse arsenal já havia evoluído para 3 peças de bronze, 24 peças de ferro, com uma guarnição de 14 praças e um tenente no comando. Antes, porém, em 1808, quando a sua planta chegou de Lisboa devidamente projetada e calculada, o monumento passou por uma grande reconstrução.
Hoje, apesar de estar situado na cidade do Paulista, o monumento pertence a Prefeitura da Cidade de Olinda, tendo sido tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em 24 de maio de 1938, sob o número 84, no Livro das Belas-Artes.
As fotografias acima, retratando detalhes dos Forte em um dos seus vértices, foram feitas por mim, em 1990.
Hoje, passados mais de vinte anos da execução das fotos, sinto a necessidade de voltar ao local para novos registros e outros pic-nics. Dessa feita, levando os meus netos.

sexta-feira, 15 de junho de 2012

A vida intensa de um compositor compulsivo



Inaldo Moreira no programa "Trem das Onze", na Rádio Universitária AM do Recife
Fotografia de Cida Machado/2011

A VIDA INTENSA DE UM COMPOSITOR COMPULSIVO

Clóvis Campêlo

Sagitariano do primeiro decanato, Inaldo Moreira nasceu no bairro do Cordeiro, no Recife, no dia 23 de novembro de 1937.
Na época, a família morava na rua Melu e não pode contar com a ajuda da comadre Corina, parteira responsável pelos partos da família, que se encontrava em outra nobre missão. O jeito foi seu Austricliano, pai de Inaldo, selar o cavalo e ir ao Sítio Boa Ideia, onde hoje se encontra o bairro de San Martin, em busca de outra parteira. Inaldo nascia, assim, quebrando uma tradição familiar.
No Cordeiro, Inaldo nasceu e mora até hoje. Saiu do bairro em pouquíssimas ocasiões. Uma delas, para fazer o doutorado em Economia, na França, onde morou dois anos com toda a família. Em outra, para estudar inglês na Inglaterra, onde ficou seis meses. Morou ainda algum tempo na Bahia e no Rio de Janeiro, respectivamente como funcionário da Petrobrás e do Serpro.
No início de 1943, quando Inaldo tinha cinco anos de idade, dona Carminha, sua mãe, resolveu que estava na hora de colocá-lo na escola. Por essa época, morava na rua Bom Jesus, onde funcionava a escola de dona Zila. Acontece que dona Zila era casada com seu Misael, presidente do Bloco Carnavalesco Mixto Camelo de Ouro, cuja sede era no mesmo prédio da escola. Na rua, também ficava a sede do clube Bebé. Assim, ao mesmo tempo em que se iniciava nas letras, Inaldo tinha contato com a cultura pernambucana dos frevos de bloco. Não é a toa que, posteriormente, tenha iniciado a sua vida de compositor com esse gênero musical. Ambos os clubes são citados pelo compositor Edgard Moraes na música “Valores do Passado”, hino do Bloco da Saudade.
Em 1949, aos doze anos de idade, por imposição do pai, que gostava de tocar violão e cantar as músicas de Augusto Calheiros, foi estudar música com seu Calazans. O mestre também era compositor de frevos-de-bloco e morava no bairro da Torre. Durante dois anos estudou clarinete, embora possuísse em casa um bandolim de cuia (napolitano). Depois desse período, considerado apto para o instrumento pelo mestre, ganhou do pai um clarinete.
No Ginásio Pernambucano, na época chamado Colégio Estadual de Pernambuco, Inaldo fez o curso ginasial. Em um final de tarde, passando pelo prédio do Liceu de Artes e Ofícios, ao voltar para casa, movido pela curiosidade, ali entrou. Foi recebido por um homem de cor, chamado Francelino, que lhe indagou se tocava algum instrumento. Ao saber que Inaldo tocava clarinete, deu-lhe algumas partituras que foram bem interpretadas pelo jovem. Posteriormente, pediu-lhe para tocar algo de ouvido. Satisfeito, então, convidou-o para ensaiar com a Banda do Liceu, nas noites das quinta-feiras. O mestre da banda se chamava Manoel Ferreira e lá, entre outros, Inaldo conviveu com Lídio, pai do maestro Duda, que tocava percussão na banda. Ficou no Liceu até 1956, quando completou 18 anos e foi servir ao Exército brasileiro.
No Exército, passou 3 anos e era conhecido como o cabo maestro. Apesar da alcunha, praticamente desligou-se da vida de músico e instrumentista. No entanto, lá conheceu um soldado que tinha o apelido de Pinóquio e que cantava no Coral da Igreja do Carmo. Levado por ele, Inaldo integrou-se ao Coral que era comandado pelo maestro Mabel Bezerra. No Exército, no dia da sua baixa, como era um bom datilógrafo, foi requisitado para trabalhar com o major Ibiapina e o major Newton Cruz, figuras que depois ficariam conhecidas como homens duros do regime militar instaurado no Brasil em 1964.
Cumprido o período militar e voltando à vida de paisano, Inaldo fez vestibular para engenharia civil. Um detalhe triste é o falecimento de seu Austricliano, pai de Inaldo, no dia do vestibular. Mesmo assim, passou em terceiro lugar.
Já cursando a faculdade, Inaldo fez concurso para o Banco do Brasil, sendo aprovado. Designado para trabalhar na cidade de Limoeiro, não desistiu da faculdade. Todos os dias, saía de casa às 5 horas da manhã, cumpria o expediente em Limoeiro até uma hora da tarde e voltava ao Recife para cursar a faculdade.
Em 1966, passou em concurso da Petrobrás como engenheiro, indo trabalhar na Bahia. Entusiasmado com a campanha “O petróleo é nosso”, acreditava que estava prestando um grande serviço à Pátria. No começo de 1968, porém, pediu demissão e voltou para o Recife. Na Bahia, conheceu Maria, que viria a ser a sua esposa.
Em 1968, foi trabalhar no Serviço Federal de Processamento de Dados (SERPRO), onde ficou 9 anos, alguns dos quais morando na cidade maravilhosa do Rio de Janeiro. Pediu demissão do Serpro para fazer mestrado em Economia, na Universidade Federal de Pernambuco. Antes mesmo de terminar o curso, já era professor colaborador da instituição.
Por conta disso, em 1979 ganhou uma bolsa para fazer o doutorado em Economia, na França, para onde levou a família. Voltou da França em 1982, já como professor assitente da UFPE (fez o concurso antes mesmo de terminar o doutorado).
Só quando se aposentou da UFPE, em 1992, é que Inaldo resolveu retomar de forma mais intensa a sua relação com a música. Voltou a estudar e começou a compor. Sua primeira música nessa nova fase, por sinal, foi um frevo-de-bloco em homenagem ao Coral Edgard Moraes, gravada pelo grupo, em 1999, no seu primeiro disco.
Apesar do curto período como compositor ativo, hoje, Inaldo tem em torno de 400 composições, entre frevos-de-bloco, frevos-de-rua, choros, maxixes, tangos brasileiros, valsas, polcas e suítes. São quatorze CD's gravados por conta própria e distribuídos entre os amigos comprovadamente apaixonados pela música popular brasileira. Os únicos discos à venda e que podem ser encontrados na Livraria Cultura, no Recife Antigo, são os cds “Valsas Pernambucanas”, gravados pelo pianista Fernando Muller. No CD nº 1, inclusive, consta a valsa “Dona Carminha”, feita em homenagem à sua mãe, Maria do Carmo Lima Moreira.
Do casamento com Maria, nasceram três filhos: Iúri, jornalista e músico amador, e Maíra e Moema, gêmeas, formadas pela UFPE e professoras por concurso do Conservatório Pernambucano de Música e da Prefeitura de Olinda. Maria, por seu lado, é professora de História do Estado e canta no Coral do Bloco da Saudade e no Coral Stallo.
No jardim da sua casa, no bairro do Cordeiro, Inaldo construiu e Praça do Choro e se auto denominou o seu prefeito. É lá que recebe os amigos chorões e compositores conhecidos daqui e de todo o Brasil.
Uma vida intensa de um compositor retardatário e compulsivo.

Recife, 2012

domingo, 10 de junho de 2012

Morrer de amor eu quero, minha amada



MORRER DE AMOR EU QUERO, MINHA AMADA

Clóvis Campêlo

Morrer de amor eu quero, minha amada,
buscando em ti o gozo derradeiro,
fazendo disso a última empreitada
e do teu colo um nobre travesseiro;
romper febril o alvor da madrugada
e encontrar um porto alvissareiro,
onde em silêncio encontre a calmaria
e veja a noite escurecer o dia.

terça-feira, 5 de junho de 2012

Do picaresco ao fantástico



DO PICARESCO AO FANTÁSTICO


Clóvis Campêlo

Um dos aspectos que caracterizam as obras de Gilvan Lemos é a presença do elemento picaresco. Surgido na Espanha medieval, o romance picaresco, cuja obra mais representativa entre nós é o "Dom Quixote", de Cervantes, representou uma significativa transformação na literatura ocidental por deixar de lado a narração dos sentimentos "nobres" e os atos heróicos da aristocracia dominante, para mostrar as camadas mais marginalizadas da população atuando como protagonistas em suas lutas pela sobrevivência.
A grosso modo, do ponto de vista político e social, tal transformação indica uma fissura na estrutura do poder da época que culminaria com a queda da aristocracia e a ascensão burguesa.
Segundo os estudiosos do assunto, a participação dos pícaros na literatura espanhola medieval segue uma linha evolutiva que se inicia mostrando-os como vítimas e marginalizados, passando pela sua integração social, sempre através mentiras e artimanhas, até a sua completa ascensão ou a deliquência irrecuperável.
No romance "O Anjo do Quarto Dia", de Gilvan Lemos, vamos encontrar estes três estágios caminhando paralelarmente: o primeiro, representado pela prostituta Piranha; o segundo, pelo contemplativo Codó; o terceiro, pelo poderoso Oricão.
No entanto, como a ascensão do pícaro à condição de dominador, na figura de Oricão, não significa a subversão da ordem estabelecida, encampando Oricão a estrutura do poder constituído, o autor apela para o fantástico enquanto força restauradora da justiça entre os homens.
É aí que surge o anjo do quarto dia para restabelecer uma condição de equilíbrio e igualdade.

Recife, 1993