terça-feira, 28 de julho de 2015

O preço do amor


Fotografia de Clóvis Campêlo / 2015

O PREÇO DO AMOR

Clóvis Campêlo

Consta que o homem é o único animal que se prevalece do sexo em nome do prazer. Para todas as outras espécies, serve o sexo para a manutenção da espécie. Em função disso, nas sociedades ditas modernas, estabeleceu-se uma verdadeira indústria do prazer sexual.
Antes, na era vitoriana, quando apenas aos indivíduos do sexo masculino era permitida a relação sexual fora do casamento, prevalecia a prostituição feminina, com os corpos sendo vendidos nos lupanares da vida. Às mulheres, restava apenas o casamento, quando saia do julgo econômico e social do pai, para ficar sob a responsabilidade financeira do marido. Às que ficavam no caritó, solteironas, restava apenas a fuga freudiana da histeria.
Se aos indivíduos do sexo masculino era permitida a satisfação dos desejos sexuais nos prostíbulos, às mulheres a virgindade era condição sine qua non para conseguirem um marido. Às mulheres que se “perdiam”, envolvidas geralmente por homens de pouco caráter, só restava o caminho da solidão nos conventos ou na meretrício.
No meu tempo de menino, quando os costumes ainda não haviam adquirente um nível tão alto de permissividade, cansei de presenciar moças de família, algumas até irmãs de amigos de infância, serem colocadas de casa para fora, pelo pai, por haverem se aventurado pelos caminhos da satisfação sexual antes dos contratos nupciais. A virgindade, além do dote paterno, quando era o caso, tinha um alto poder de barganha e podia servir de instrumento de ascensão social para quem soubesse ou pudesse usá-la com inteligência. Lembro, por exemplo, da existência de um grupo de meninas, essas já avançadas demais para aquele tempo, que se permitiam o sexo anal, mas mantendo a integridade do hímen, preciosa membrana de alto valor social. Essas moças ousadas e de um autocontrole admirável, eram chamadas pejorativamente de “bundeiras” e nem sempre eram tratadas com o devido respeito pela sociedade excessivamente machista da época.
As mocinhas do interior que vinham para a cidade grande em busca de emprego, e que geralmente trabalhavam como doméstica nas casas de família também sofriam com a discriminação da perda antecipada da virgindade. Para essas, invariavelmente, só restava o “caminho da zona”. Caso fossem engraçadas e fisicamente privilegiadas, podiam acabar numa pensão de melhor nível. Se fossem feias e desajeitadas, iam para as pensões de baixo nível, invariavelmente para morrer de sífilis ou tuberculose, contraídas com os parceiros que não podiam escolher e pelas noites perdida de sono, cigarros, bebida e má alimentação.
Esse foi o preço pago pelas mulheres da minha geração que, por burrice ou ousadia, tiveram a coragem de romper com os padrões vigentes.
Hoje, a situação é outra, bastante diferente. O sexo já não é considerado como algo pecaminoso ou sujo. A virgindade já não vale mais, nada sendo ridicularizada e tratada até com ironia e desdém. Às mulheres foi dado o direito ao prazer e à liberdade sexual. O comércio sexual se ampliou e permite, por exemplo, que um motel instalado em um prédio decadente da Rua da Palma, no centro do Recife, coloque no alto do seu terraço a propaganda acima, onde as pessoas de pouco poder aquisitivo poderão desfrutar de três horas de amor pelo preço módico de R$ 29,90, com direito ainda a uma latinha de cerveja gelada.
Os tempos mudaram, amigos!

Recife, julho 2015

segunda-feira, 27 de julho de 2015

A hora de descansar


A HORA DE DESCANSAR

Clóvis Campêlo

O poeta Ascenso Ferreira nasceu e morreu no mês de maio. Nasceu na cidade dos Palmares, na zona da mata sul do Estado de Pernambuco, e morreu no Recife, a capital do Estado. Nos 70 anos em que viveu, de 1895 a 1965, escreveu poemas diversos e viveu polêmicas diversas também.
Segundo os seus estudiosos, começou escrevendo sonetos, baladas e madrigais, sem relevâncias. Depois, descobriu o Modernismo e a Semana de Arte Moderna, e sob a influência de Guilherme de Almeida, Mário de Andrade e Manuel Bandeira, descambou por um caminho onde afirmou-se como um dos grandes nomes do movimento no nosso Estado.
Segundo o site Releituras, “Distingue-se não pela quantidade, mas pela qualidade, atingindo não raro efeitos novos, originais, imprevistos, em matéria de humorismo e sátira”.
O poema “Filosofia”, que abaixo transcrevemos, insere-se nesse contexto. O poema foi publicado no livro"Catimbó e Outros Poemas" (Editora José Olympio, Rio de Janeiro, 1963). Depois, foi incluído no livro"Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século" (Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2001, pág. 83), organizado por Ítalo Moriconi.
Politicamente, segundo a Wikipédia, participou ativamente da campanha presidencial de Juscelino Kubitschek, em 1955, inclusive participando de comícios no Rio de Janeiro. Em consequência disso, no ano seguinte, foi nomeado por JK para a direção do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, no Recife, mas a nomeação foi cancelada dez dias depois, porque um grupo de intelectuais recifenses não aceitava que o poeta e boêmio irreverente assumisse o cargo. Foi nomeado, então, assessor do Ministério da Educação e Cultura, onde só comparecia para receber o salário.
Dizem que o poeta nos finais de tarde, gostava de passear pelas margens do Rio Capibaribe, na altura do atual shopping Paço da Alfândega, onde em sua homenagem, no Circuito da Poesia Pernambucana, foi erguida a escultura acima, em sua homenagem.
O poema abaixo casa bem com a imagem por nós captada, onde operários descansam deitados na calçada, ao lado da estátua do poeta, sob a sombra de um pé de amêndoa (coração de nego, para nós). Confiram:

FILOSOFIA


Hora de comer — comer!
Hora de dormir — dormir!
Hora de vadiar — vadiar!
Hora de trabalhar?
— Pernas pro ar que ninguém é de ferro!

Recife, julho 2015

quarta-feira, 8 de julho de 2015

As águas do Capibaribe

Fotografia de Clóvis Campêlo / 2015

AS ÁGUAS DO CAPIBARIBE

Clóvis Campêlo

Dizem os historiadores e geólogos que as águas trouxeram a areia e com ela escreveram o seu próprio caminho. A isso se chama de aluvião. Estamos numa planície aluvional. Onde antes existia uma baía. A baía de Paranabuco? Um trabalho longo, paciente e extenuante da Natureza, complementado, séculos depois, pelas mãos do bicho homem. Assim, essa relação íntima, próxima, construtiva, entre nós, a cidade e o rio. Um consórcio gigantesco pela própria concepção.
Na língua tupi dos índios, capibaribe significa o rio das capivaras. Há quem diga que até bem pouco tempo atrás, elas ainda invadiam os quintais dos bairros de Casa Forte e da Várzea do Capibaribe. Outros afirmam, que de manhã cedinho, na Rua da Aurora, era comum se ver os botos dando saltos amostrados e belos. Infelizmente, não cheguei a alcançar isso.
Mas, nos anos 60, lembro bem da violência do vinhoto, resíduo pastoso e mal-cheiroso que sobrava após a fermentação do caldo da cana para a obtenção do etanol. As usinas eram impiedosas. Toneladas de peixes foram mortos e a vegetação que havia no mangue, dizimada. Nessa época, quando o vinhoto era derramado sem o menor escrúpulo ou consciência ecológica, era grande a fedentina no centro do Recife. O Capibaribe quase morreu.
Porém, se até o Tâmisa foi libertado da podridão da sua lama, por que não nós? Um prefeito mais atento replantou a vegetação do mangue e o centro da cidade se tornou mais verde. As usinas foram proibidas da agressão do vinhoto e os peixes e crustáceos ribeirinhos foram reabilitados. E, apesar do lixo e dos esgotos que ainda sujam as suas águas, o Capibaribe tornou-se mais limpo e mais livre. Hoje, ainda é comum se ver pescadores nas pontes, de linha de pescar ou jereré nas mãos, em busca do alimento que o rio nunca nos negou. Ou então, as catadoras de marisco aproveitando a baixa da maré para catar sururu e marisco nas areis do mangue que se confunde com o rio. É antiga essa relação do homem do Recife com o seu rio. Vem dos anos do século XVI, quando os primeiros pescadores desceram as ladeiras de Olinda e se instalaram no areal incipiente para ficar mais próximos do mar e dos peixes marinhos.
Ali nascia a cidade, que cresceu de fora para dentro, extrapolando as areias do mangue, chegando aos engenhos que existiram na periferia do Recife e que terminaram por determinar os nomes de vários dos nossos bairros.
O Rio Capibaribe nasce na cidade de Poção, na Serra da Jacarará, a 240 quilômetros do Recife. Antes de desaguar no Oceano Atlântico, banha 42 municípios pernambucanos. Ao entrar na região metropolitana, corta o Recife ao meio, como uma faca corta uma fruta. A sua visão inspira poetas e torna o Recife uma cidade belíssima, principalmente quando vista de cima. No centro da cidade, encontra-se com o Rio Beberibe, que vem de Olinda, e juntos desaguam no mar.
Não há como interpretar o Recife e o seu povo sem o entendimento do rio. Ele nos traduz. Decifra os nossos mais profundos anseios e nos constrói um cenário ímpar e de extrema plasticidade. Sem ele, não existiríamos.

Recife, julho 2015

- Publicado no livro Crônicas Recifenses, Recife, Clube de Autores, 2018

segunda-feira, 6 de julho de 2015

A Ladeira da Misericórdia


O poeta Plínio Varjão cantando os seus blues na Ladeira da Misericórdia
Fotografia de Clóvis Campêlo/2015

A LADEIRA DA MISERICÓRDIA

Clóvis Campêlo

Pouca gente sabe disso, mas o planeta Waxtraas, com seus quatro sóis e suas doze luas, sobrevoa a Ladeira da Misericórdia, em Olinda. Com seus sete oceanos de água doce, mitiga a sede dos que sobem a ladeira e os purifica dos sentimentos mesquinhos e individualistas que nos consomem.
É assim que canta o poeta e compositor Plínio Varjão, na calçada da ladeira, vendendo o seu segundo CD, repleto de um blues nordestinado e otimista. Com letras simples e composições despojadas. E uma voz áspera que tanto nos lembra Paulo Diniz quanto os velhos blueseiros do Mississipi. No mesmo CD, aliás, canta a própria ladeira, numa música homônima, onde lamenta a ausência sentida dos seus velhos frequentadores. A sua figura, aliás, lembra-nos os velhos hippies dos anos 60 e 70, que habitaram as ruas e ladeiras de Olinda. Trata-se, na verdade, de um rejuvenescido senhor de mais de 50 anos. Um sobrevivente (ou remanescente) daquele ideário. Olinda é assim!
Mais acima, encontro o também poeta e compositor Dido Santos, vendendo os seus CDs e os seus trabalhos como artista plástico. Também oriundo daquela época, tem um trabalho musical mais elaborado e menos onírico. Suas telas coloridas cobrem a calçada da Ladeira a espera dos compradores habituais, turistas alienígenas ou personagens nativos, como eu.
Dizem que a Ladeira da Misericórdia tem esse nome por ser a mais íngreme de Olinda e exigir um esforço demasiado de quem por ela sobre em busca do Alto da Sé. Faz sentido. Segundo outra versão, porém, o nome faz menção à Santa Casa de Misericórdia, a primeiras das Américas, que funcionava no alto da ladeira.
Segundo o site Pelas Ruas que Andei, a Ladeira da Misericórdia foi a primeira rua da cidade, tendo sido chamada anteriormente de Rua Nova e Rua dos Ourives. Lá moravam as pessoas mais importantes da cidade, como o donatário Duarte Coelho. Hoje é uma rua de poucas moradias tomada pelo comércio.
Com sua rua calçada por pedras portuguesas, a Ladeira da Misericórdia também foi cantada por Alceu Valença, na música “Ladeiras”, onde reverencia as ladeiras da velha Marim dos Caetés: “Ladeira da Misericórdia tem pena de mim”.
No alto da ladeira, encontra-se a Igreja de Nossa Senhora da Misericórdia, cuja origem remonta ao século XVII. Segundo a Wikipédia, “antes do grande incêndio de 1631 já havia registro das atividades, no mesmo local, de uma igreja com uma enfermaria anexa. Destruída sua sede pelo fogo, os Irmãos da Misericórdia abandonaram a cidade e se instalaram no Arraial do Bom Jesus até 1635, passando depois a administrar um hospital criado no Engenho de São João da Várzea, voltando para Olinda somente após a retirada holandesa, em 1654”.
Descendo a Ladeira da Misericórdia, chegamos aos Quatro Cantos de Olinda, onde depois do cruzamento com a Rua Prudente de Moraes, inicia-se a Rua de São Bento, que nos levará ao Mercado da Ribeira e ao Mosteiro de São Bento, passando ainda pela ruínas do antigo senado, pela casa de Alceu Valença e pelo prédio histórico da Prefeitura de Olinda.
Olinda é assim: história, cultura e lazer. E na Ladeira da Misericórdia o reflexo de tudo isso e muito mais.

Recife, julho 2015