terça-feira, 29 de novembro de 2011

Delírio azul


Fotografia de Clóvis Campêlo/2000
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DELÍRIO AZUL

Clóvis Campêlo


Entre os rios e o mar, Recife é um delírio azul. Dos sonhos dos homens, fez-se a cidade que sempre encantou poetas e imperadores. Dos sonhos dos homens e dos aluviões, matéria orgânica semeando o futuro sobre as águas.
Entre risos e bares, Recife é um transe etílico. Do porre dos poetas, fez-se a literatura nem sempre bem comportada que alicerçou a sua fama de reduto de bardos e bêbados. Em bandos ou solitários, a margear as águas nem sempre límpidas do mangue.
Sobre rios, pontes e overdrives, Recife é sinuosidade, é extravagância, superação de limites. Na sua concepção, em nada, porém, difere de todas as outras cidades do mundo. É equívoco, prisão, neuroses, contenção. Recria-se sempre sob a ótica do pragmatismo capitalista, a grana erguendo e destruindo coisas belas, sequelas.
Entre o passado e o futuro, Recife é o presente nem sempre bem compreendido. Onde estarão os botos do Capibaribe, espantados pelo vinhoto das suas usinas de açúcar e pelo murmúrio incessante das suas máquinas modernas? Recife perde-se na sua própria contemporaneidade. Que cidade é essa? Deitada para sempre no berço esplêndido da planície aluvional, a esperar com paciência o beijo libertador do cavaleiro do futuro.
Quantas vezes nos renderemos à luz do luar secular? Quantas paredes se ergueram entre ela e o seu solo úmido? Quantos séculos ainda esperaremos pelo que nunca existiu, pela essência para sempre perdida do passado, dos casarões malassombrados, do vento morno do verão que nunca nos açoitou as faces?
A gente precisa ver o luar!

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domingo, 27 de novembro de 2011

Constatação



CONSTATAÇÃO

Clóvis Campêlo


Pra sempre ser "gauche" na vida
não me foi por um anjo dito,
foi minha opção escolhida,
foi o meu destino bendito.

Desfolhar sempre a realidade
como quem procura na essência
a busca de toda a verdade,
verdade de toda existência.

No entanto, resistia o mundo
a este sincero e profundo
desejo de o ver transformado.

E embora guerreiro na luta
investisse com força bruta,
eu é que fui sendo mudado.


Recife, 1991


sexta-feira, 25 de novembro de 2011

O frevo de rua



O FREVO DE RUA

Clóvis Campêlo


O frevo é pernambucano e nasceu pelas ruas do Recife, misturando polca, dobrados, maxixes, tangos e quadrilhas.
O frevo é pernambucano e degenerou-se a partir das bandas marciais que existiam no Recife no século XIX.
O frevo é pernambucano e teve a sua paternidade concebida pela banda do 4º Batalhão de Artilharia, o Quarto, e pela banda da Guarda Nacional, a Espanha de Pedro Garrido.
O frevo é pernambucano e na sua concepção despretensiosa e natural ousou misturar a dança e a música.
O frevo é eminentemente urbano.
Quem diz isso não sou eu. São vários pesquisadores, pernambucanos ou não. Entre eles, José Ramos Tinhorão.
No frevo, os dobrados desdobraram-se e foram sendo acelerados. Primeiro, os passos dos capoeiristas que acompanhavam as bandas e disputavam os espaços das ruas. Depois, as notas musicais, mais rápidas, mais curtas e mais altas. O frevo tomava corpo e forma. O frevo mostrava a alma.
O frevo sempre foi do povo. Primeiro do lúmpen que acompanhava as orquestras. Depois, dos trabalhadores urbanos mais organizados.
Acompanhemos Tinhorão: "Até o início da século XX, as marchas que começavam a ser frevos, antes mesmo do aparecimento desse nome, ainda não possuíam o caráter explosivo que o frevo de rua adotaria posteriormente.
Quando, porém, a partir do início do século, são rompidas as relações urbanas algo feudais do Recife pela presença das indústrias têxtil e açucareira, e a cidade se enche de novas camadas de trabalhadores procedentes da zona rural, dissociados das tradições locais, esses moradores de mocambos da zona alagada permitem o advento do frevo de rua estritamente orquestral, destinado pura e simplesmente à cega libertação de energia dos pés-de-poeira.
Para a música produzida pelas fanfarras em suas passeatas carnavalescas isso queria dizer que não havia mais qualquer compromisso com o repertório ora marcial, ora folclórico herdado do século XIX, e os metais poderiam enfim explodir em colcheias e semicolcheias nas introduções que desenhavam uma melodia marcada por síncopas, enquanto o ritmo, desprezando as medidas de tempo, produzia a ginga visivelmente inspirada nas desarticulações do corpo dos dançarinos entregues à loucura do passo."
Ou seja, o povo criou o frevo e o povo o libertou das amarras iniciais. O frevo sempre foi do povo. E, passo a passo, a liberdade do passo foi sendo inventada, ordenada e consentida. O frevo sempre foi liberdade.
Falo do frevo de rua, é claro, e dentro das concepções do crítico e estudioso paulista. As opiniões de Tinhorão estão no livro Pequena história da música popular (Ed. Vozes, Petrópolis, 1974, pág. 137/146). São interessantes e polêmicas quando trata de analisar as outras modalidades do frevo (frevo-canção e frevo-de-bloco).
Portanto, agora, quando novamente se aproxima o carnaval, vale a pena lembrarmos do ritmo autenticamente pernambucano.
Por enquanto, porém, falemos da invenção e das evoluções do frevo de rua, o frevo que encantou Tinhorão.
O resto virá depois.


terça-feira, 22 de novembro de 2011

Sobre passarinhos e ecologia


SOBRE PASSARINHOS E ECOLOGIA

Clóvis Campêlo

A paz é uma utopia inventada pelo homem. Mesmo na Natureza, entre os animais, ela não existe. Mata-se para sobreviver e isso é justo e natural. É a lei da vida, A cadeia alimentar mantendo o equilíbrio ambiental e ecológico. O bicho-homem é que mata em nome do lucro e das falsas ideologias. E isso é trágico.
Outro dia, viajando para a cidade de Canhotinho com o meu amigo Bartolomeu Lima, demos uma paradinha estratégica na Bica da Mijada da Velha, em São Benedito do Sul, para um refrigério necessário. O dono do local era passarinheiro e logo surgiu uma inevitável conversa sobre a criação de passarinhos. Contou-nos ele que já tivera problemas com o Ibama por conta das gaiolas mantidas no seu estabelecimento às margens da rodovia. No entanto, indagou por que as usinas de produção do açúcar também não eram multadas, já que os defensivos e agrotóxicos usados na monocultura da cana causavam uma mortandade e um extermínio de aves muito grandes, trazendo um prejuízo maior do que o hábito do matuto de criá-las em cativeiro, bem alimentadas e livres dos predadores naturais. Segundo ele, mesmo ali, naquela cidade situada na zona da mata sul do Estado e ainda cercada por áreas de preservação da Mata Atlântica já era notória a diminuição dos passarinhos e da fauna em geral. Para mim, a indagação é corretíssima e merece uma reflexão.
Outro dia, domingo de manhã cedinho, na feira do Cordeiro, onde são vendidos pássaros importados de outras regiões do planeta (Austrália, Nova Zelândia, Japão, China, etc.), presenciei a fuga de um gaiolão de várias espécies de aves chinesas. Assim como aconteceu com os pardais trazidos da Europa nos anos 60, logo elas estarão devidamente adaptadas e se reproduzindo no novo habitat. Esse é um outro problema a ser seriamente considerado, pois isso implica em rápidas modificações na nossa fauna. A Natureza leva anos ou séculos para proceder a essas mudanças, dependendo das necessidades de adaptação ou sobrevivência das espécies, e o bicho-homem, movido por interesses pecuniários e anti-naturais interfere de maneira brusca e negativa nesse processo.
Consideremos ainda a contradição que existe na nossa legislação de tentar preservar as nossas espécies animais e ser conivente com a caça e o extermínio das espécies animais de outros países. Isso também é justo e ecologicamente correto?
Enfim, todas essas considerações me vieram à cabeça após a morte trágica de Brasão nas garras de um carcará que cumpria apenas o papel que lhe fora estabelecido pela Mãe Natureza, nas suas leis sábias e independentes das considerações conceituais do bicho-homem.
A cultura, a civilização, a modernidade, nada mais são do que ilusões por nós criadas para justificar as nossas atitudes antinaturais e mortíferas.



domingo, 20 de novembro de 2011

A morte de Brasão


A MORTE DE BRASÃO

Clóvis Campêlo


Uma das coisa mais curiosas que me lembro no livro “Henfil na China”, escrito nos anos 70 pelo falecido cartunista do Pasquim, eram os chineses oriundos das áreas rurais criando galinhas nas cozinhas dos apartamentos construídos pelos governo para realocá-los.
Não sou chinês e nem crio galinhas, mas gosto de criar passarinhos. O hábito, eu herdei do meu pai. Na nossa casa, no Pina, sempre havia muitas gaiolas para serem cuidadas por mim e por meu irmão, Carlinhos.
Com o meu tio Luís Regueira, cansei de me embrenhar de madrugada pelas matas de Camaragibe para passarinhar. Saíamos de casa bem cedo, levando uma sacola com mantimento (pão, goiabada e queijo de coalho), para pegar o ônibus no Recife Antigo. Antes de voltarmos para casa, à tarde, ainda desfrutávamos de um bom banho nas águas limpas do Riacho do Flamengo, hoje completamente poluído e perigosíssimo, local de desova da bandidagem.
Hoje, embora ainda existam resquícios da Mata Atlântica circundando o Recife, os passarinhos escassearam. Uns dizem que por conta dos pardais, pássaros alienígenas importados da Europa, nos anos 60, para combater o lacerdinha, um inseto que naquela época invadira o Recife e causava transtornos à população. Os lacerdinhas sumiram, é verdade, mas os pardais ficaram e espantaram os pássaros nativos (curiós, galos-de-campina, canários, patativas, papa-capins, caboclinhos, bigodes, guriatãs, etc).
Em agosto do ano passado, recebo um papa-capim de presente, trazido por um amigo meu do seu sítio, em Abreu e Lima. Resolvo chamá-lo de Brasão, atacante que, na época, estava em destaque no Santa Cruz. E, apesar de morar em um apartamento de classe média, no bairro do Cordeiro, logo arranjei no terraço um lugar de destaque para ele. Começava ali uma grande relação de amizade. Nesses quinze meses de convivência, acostumei-me a acordar de manhã cedo com o canto de Brasão. Era como se fosse um bom dia amigo.
Ontem, abruptamente, essa relação foi interrompida. Pelo celular, recebo a incrédula notícia: burlando a vigilância da família Campêlo, um gavião que andava rondando o terraço pegara Brasão desprevenido. Para o gavião, nada mais justo do que querer alimentar-se com a carne gorda e bem cuidada de Brasão. Para mim, que raciocino diferente e passionalmente, aumentou um pouco mais o meu vazio existencial.


sábado, 19 de novembro de 2011

Lindo pendão




LINDO PENDÃO

Em homenagem ao Dia da Bandeira e ao poeta Torquato Neto

Clóvis Campêlo

Salve o teu lindo olhar de esperança,
símbolo augusto de um novo dia,
e a saúde que o mesmo irradia
faz-me crer apenas na bonança.

Dos teus olhos o belo pendão,
na grandeza do afeto que encerra,
mantém-me na alegria e descerra
a cortina de nova visão.

A tua nobre presença alimenta
em meu peito um amor varonil,
facho aceso a tua luz afugenta

meus fantasmas, temor juvenil;
verde olhar o teu que me acalenta
a quimera de um sonho infantil.


Recife, 1991