quarta-feira, 30 de abril de 2014

O louco e o poeta


Fotografia de Diego Nigro/JC

O LOUCO E O POETA

Clóvis Campêlo

A cidade do Recife amanheceu consternada nessa segunda-feira. De madrugada, um maluco destruiu partes da escultura do poeta Ascenso Ferreira, situada no Cais da Alfândega. Dizem que em vida o poeta gostava de por ali passear nos fins de tarde, admirando o por do sol por trás do Capibaribe. Em função disso, o local foi escolhido para acolher a sua imagem.
Em qualquer cidade do mundo, é duro ser estátua, amigos. Nos anos 60, o compositor Erasmo Carlos já afirmava isso em uma de suas músicas. No caso do compositor paulista, o que lhe afligia eram os pombos na cabeça e os brotos passando incólumes ao seu lado. No caso do poeta pernambucano, o perigo veio de um louco solto pelas ruas, um lúmpen perdido nas noites recifenses.
Mas afinal o que o teria levado a cometer tamanha sandice? No seu delírio quixotesco de louco, a imagem poética daquele homenzarrão às margens do rio deve ter lhe sugerido um monstro a ser derrotado, um moinho de vento imponente a desafiar-lhe a insanidade.
Bastou-lhe uma pedra, um paralelepípedo proparoxítono, para enfrentar e derrotar o perigo imaginário. E sempre haverá uma pedra no caminho, amigos, para desestabilizar a inércia da vida ou da noite. Alguns poucos golpes e o vilão solitário desfigurou o rosto bonachão e pacato do poeta. Depois, mirou e atingiu as suas mãos de poeta, repletas dos versos danados e revolucionários do modernismo brasileiro. Inerte em seu sono de pedra, só restou ao bardo aguardar em silêncio as luzes do dia com a resignação dos feridos de morte. Mesmo desfigurado, porém, manteve-se de pé. Afinal, feito de ferro e pedra deve ter no íntimo a certeza do renascimento.
Ao louco vencedor, além dos louros da vitória no combate desigual, coube a glória de atravessar solene a ponte Maurício de Nassau, sem pedágios ou bois voadores a lhe incomodar a insanidade noturna. Talvez visasse um outro poeta logo adiante, uma outra imagem imponente situada sobre a ponte a contemplar eternamente os ares poéticos do encontro dos rios.
Se era essa a sua intenção, porém, não logrou êxito. Logo adiante foi detido por uma viatura policial. A próxima vítima estava a salvo. O seu corpo diminuto não seria sacrificado pela loucura gratuita do dom quixote urbano. Encerrava-se ali mais uma tragicomédia pós-moderna. E, loucuras a parte, com certeza, entre mortos e feridos, todos terão o direito de escapar. A imagem do poeta dos Palmares será reconstituída e deverá caber às autoridades competentes a responsabilidade pela proteção e tratamento adequados a serem dispensados ao meliante tresloucado.
Afinal, de poeta e de louco todos nós temos um pouco.

Recife, 2014

terça-feira, 29 de abril de 2014

Vai!


VAI!

Clóvis Campêlo

Vai que a juventude
dessa brisa
espanta
e nem um pouco
me afugenta
a dor.

Vai que a inquietude
dessa vida
é tanta
que nem um louco
lhe entende
a cor.

Vai que a negritude
dos teus olhos
é manta
que me acoberta
e aquece
de amor.

Vai que um dia
tudo se transforma
e se agiganta
e nós seremos
o sol a se por.

Vai!

Recife, 2008

sábado, 26 de abril de 2014

No tempo das mariquitas


NO TEMPO DAS MARIQUITAS

Clóvis Campêlo

Havia uma época em que as mariquitas invadiam as locas das pedras da praia do Pina. Eram uns peixinhos vermelhos, quase que inadequados para o consumo humano, por conta do excesso de espinhas. Nas marés baixas, quando o mar secava e as pedras ficavam expostas, nós os pescávamos com facilidades nas pequenas poças de água que se formavam sobre os corais.
Naquela época o antigo emissário que havia, levando os dejetos coletados da estação sanitária da Cabanga, o famoso cano do Pina, atraia uma grande quantidade de peixes. Pescar ali, era fácil. Tanto se pescava com varas de anzóis, com de rede ou de mergulho. Até mesmo a pesca predatória com bombas ainda se praticava. Perigosíssima e absurda, pois tanto servia para matar um número excessivo de peixes, a maioria dos quais não seriam utilizadas pelos pescadores, como para estourar os tímpanos de algum mergulhador incauto que estivesse por perto na hora da explosão.
Na verdade o cano do Pina funcionou até o início dos anos 80, quando foi desativado pela Compesa. Em 2004, por ordem da CPRH, o cano foi definitivamente retirado pela Prefeitura do Recife, quando da revitalização da praia. A desativação do cano diminuiu a poluição das águas mas também afastou os peixes e outros animais marinhos (siris, moreias, guajás, tatuís, etc.) do local, inclusive as mariquitas.
Um outro fator de afastamento da fauna marinha foi o assoreamento da praia, notadamente no trecho que vai do paredão de Brasília Teimosa até a Rua Ondina, no Pina. Esse processo foi tão acentuado e acelerado nos últimos anos, que os barcos de pesca que ancoravam na praia em frente à sede da Colonia Z-1, tiveram que ser deslocados para a Bacia do Pina.
Assim, fatores naturais influenciaram na mudança da rotina de trabalho dos pescadores e em alguns hábitos culturais e religiosos, como a procissão marítima de São Pedro. Realizada todos os anos no dia 29 de junho, passou a ter uma parte terrestre e outra marítima, haja vista que o andor com o santo, saindo da sede da Colônia Z-1, passou a atravessar as ruas locais até alcançar os barcos no outro lado do bairro.
Naquela época, no tempo das mariquitas, a fartura de substâncias orgânicas eram tão grande, que até alguns tubarões eram atraídos em busca dos peixes que compunham a sua cadeia alimentar. Quem pescava de mergulho, como o meu irmão Carlinhos, sabia disso. A partir da segunda faixa dos corais (existiam três faixas de corais separando os canais navegáveis, quando a maré estava baixa) era provável dar de cara com algum daqueles seres cartilaginosos, mas que raramente atacavam. A fartura de alimentos disponíveis os tornavam dispostos a conviver pacificamente com os mergulhares, diferentemente de hoje quando atacam banhistas até próximo da beira-mar.
No tempo das mariquitas, aliás, ainda não havia ocorrido no bairro a explosão demográfica provocada pela aceleração da especulação imobiliária. O Pina, com a sua praia tranquila, ainda era um bairro bucólico. Hoje, derrubam-se quarteirões inteiros de casas e pequenos prédios para a construção de espigões gigantescos e modernos. Faz tempo que as antigas casas de banho, onde se alugavam roupas (calções e maiôs) para o desfrute da praia, acabaram-se. Sumiram junto com as mariquitas.

Recife, 2014

quinta-feira, 24 de abril de 2014

O peru de Obama e as viúvas do Ipase


O PERU DE OBAMA E AS VIÙVAS DO IPASE

Clóvis Campêlo

Todos se lembram: o primeiro presidente norte americano negro perdoôu o peru branco. O nome do bicho: Courage. Veio da Carolina do Norte, onde nasceu, numa fazenda especialista em criar perus, para enriquecer o jantar do Dia de Ação de Graças do presidente.
O peru anistiado, porém, não viverá o resto dos seus dias na Casa Branca. Foi encaminhado para a Disneylândia, onde, com certeza, será transformado em mais uma atração turística.
Consta que essa história de presentear o presidente com um peru vem desde o presidente Eisenhower, em 1953. Transformou-se numa tradição. Diz ainda a lenda que o primeiro presidente a poupar o peru presenteado foi John Kennedy, nos início dos anos 60, quando o sonho dourado americano ainda não se desvanecera.
Enfim, histórias da Carochinha do Norte que nós, brasileiros e americanos do Sul, desde a mais tenra idade, escutamos.
Mas, o que teria o peru americano de Obama a ver com as saudosas viúvas do IPASE?
Lembro que nos anos 60, quando eu ainda era um menino e jogava bola nas areias da praia do Pina, era costume do meu pai, em dezembro, levar para casa os perus que comprava ou mesmo recebia de presente das viuvinhas que atendia no extinto IPASE. Aqueles pobres e comprometedores perus, já que dona Tereza, minha mãe, sempre via naquela benevolência uma possibilidade de traquinagem extra conjugal, nunca foram perdoados. Todos os dias, depois do almoço, eu e meu irmão, sentávamos no batente do terraço que havia na cozinha para cevar os perus. Tudo o que sobrava das refeições do dia e da véspera era “enriquecido” com água e farinha de mandioca e literalmente enfiado garganta a dentro dos animais, sem chance nenhuma de defesa ou contestação. Aos perus violentados, só restava a obrigação de digerir e engordar.
Como naquela época ainda não havia os aleijões transgênicos e congelados dos chesters, quando o Natal chegava os perus, com seus fígados engordados pela alimentação forçada, eram sacrificados e colocados na mesa para o deleite da família e dos vizinhos que sempre participavam, intercambiando quitutes e votos de felicidades.
Lembro disso sem nenhum sentimento de culpa. Achava e ainda acho legítimo todo aquele ritual que unia a família, terminava por dissipar as desconfianças maternas e garantia uma ceia de Natal decente e condigna.
Eramos felizes e não sabíamos que o futuro nos traria costumes diferentes e saudades de coisas simples que pareciam ser eternas.
Hoje já não existem quintais, perus a serem engordados ou mesmo vizinhos amigos e participativos, ávidos para demonstrarem a afeição e o o respeito que alimentavam aquela relação de amizade e boa convivência.
Com toda sinceridade, sinto falta disso.


Recife, dez/2009

sábado, 19 de abril de 2014

Como é gostoso o meu português


COMO É GOSTOSO O MEU PORTUGUÊS

Clóvis Campêlo

Existe hoje, na língua portuguesa falada e escrita no Brasil, uma grande confusão quanto ao uso correto das palavras perda e perca.
A primeira, segundo o aurélio que me acompanha há décadas, trata-se de um substantivo feminino, que significa ato ou efeito de perder, privação de alguma coisa que se possuía, privação da presença de alguém, extravio, sumiço, prejuízos sofridos pelo credor em consequência da diminuição do seu patrimônio, ou mesmo morte, desaparecimento ou falecimento.
A segunda, ainda com base na mesma fonte, nomeia um peixe acantopterígeo, de água doce, e de carne muito saborosa. Mas, na linguagem popular e coloquial também pode significar perda, prejuízo ou dano.
Ao mesmo tempo, ainda, perca também pode se referir a uma flexão do verbo perder, no tempo condicional.
Ou seja, talvez eu me perca nesse texto ao achar que seria uma grande perda não perceber a possibilidades dessas duas nuances.
A rigor, porém, entendo que dentro da utilização da norma culta o termo perda seja mais bem indicado na construção frasal. Entendo, no entanto, que sendo a língua uma entidade viva e que se transforma ao longo do tempo no sentido de facilitar a comunicação entre as pessoas e as instituições, nada impeça que o segundo termo seja usado sem constrangimentos. Afinal, a língua é do povo como o céu é dos satélites e dos intelsates.
E foi assim, submetido aos ditamos da fala popular, misturando os dialetos locais com o latim vulgar disseminado pelos romanos no continente europeu, que a língua portuguesa, a última flor do Lácio, nasceu. E foi assim que ela também se modificou, depois de formada, assimilando novas palavras e expressões nos lugares e países para onde foi levada pelos portugueses conquistadores da Idade Média.
E ainda é assim, nos tempos de hoje, que ela continua a se transformar e assimilar novas expressões criadas por quem a fala e pelas novas necessidades oriundas das invenções e transformações do mundo moderno.

Recife, 2014

sábado, 12 de abril de 2014

Morrer deve ser tão frio


MORRER DEVE SER TÃO FRIO

Clóvis Campêlo

Morrer deve ser tão frio,
solidão no cais do porto,
como as águas de um rio
desaguando num mar morto.

Fechando o início de um cio,
findando um trajeto torto,
alívio, talvez, desconfio,
depois, talvez, desconforto.

Talvez, quem sabe, um fio
cortando uma vida, aborto;
talvez, quem sabe, um envio,

o exílio de um rei deposto.
Morrer deve ser tão frio,
solidão no cais do porto.

Recife, 1994

quinta-feira, 10 de abril de 2014

O caminho do poeta


O CAMINHO DO POETA

Clóvis Campêlo

Não saberia sorrir
cruzando as águas do rio,
lembrando que o poeta
por ali passou um dia.

Talvez o seu existir,
por falta de algum brio,
por medo de alguma meta,
não tenha sido alegria.

Talvez não tenha sentido
o azul claro do céu,
a brisa morna do mar,
os sons que cantam a vida;

talvez tenha preferido
da tristeza todo o véu,
o frio da noite a reinar,
a dor sangrando a ferida.

Recife, 2010

terça-feira, 8 de abril de 2014

Um poeta kami-quase


UM POETA KAMI-QUASE

Clóvis Campêlo

Sou daqueles que ainda gostam de consultar o dicionário. Mesmo em tempos de google e wikipédia, que nada mais são do que dicionários transvestidos de modernidade. O dicionário é uma das bússolas do escritor e dos aprendizes de poeta. Assim, folheio o meu velho aurélio, companheiro de décadas, em busca da palavra uivo, a qual ele assim define: voz lamentosa de diversos animais quando parecem chorar, grito agudo.
A palavra, eu a encontrei no texto Aos Pariceiros dos Anos 80 (um uivo recifense) do livro Poemas Diversos, do poeta pernambucano Valmir Jordão. Desnecessário dizer que a primeira correlação feita por mim foi com o poema O Uivo, de Allen Gisberg. Pois se o uivo americano dos anos 50 serviu (e ainda serve) como roteiro para se compreender a cultura beat em confronto com o reacionarismo americano daqueles anos, o longo poema de Valmir Jordão traça um perfil completo dos poetas marginais recifenses dos anos 80 e da sua “contracultura” em confronto com a obtusidade da província naquelas eras.
Não o conheci naquela época, porém. Dele me aproximei no começo dos anos 90, quando eu integrava a direção do Sindicato dos Previdenciários de Pernambuco e ele fazia parte de um pelotão de militantes voluntários, sempre a postos em busca de uma revolução que nunca veio. Para mim, rapaz de boa família, respeitador e politicamente correto, ele representava a força caótica do lúmpen, que precisava ser canalizada para a transformação social final. Como de poeta e de louco, ele sempre teve um pouco, atraia-me e me assustava ao mesmo tempo.
De lá para cá, mudei eu, mudou o movimento sindical, que se profissionalizou e deixou o voluntarismo de lado, e talvez também tenha mudado o poeta. Assim, o reencontro no Paço Alfândega, no Recife, de livros em punho, vendendo-os num corpo-a-corpo ingrato. Essa é e sempre foi a sua vida: escrever, militar, permitir-se a resistência. Editar seus livros e vendê-los sempre me pareceu uma tarefa árdua e interminável, um trabalho de Sísifo, mas que aparentemente lhe alimenta a resistência física e ideológica. Seus poemas são recheados desse material questionador e crítico, que traz nas entrelinhas uma nova e inviável proposta cósmica. Instigante e quixotesco.
Em alguns poemas mais recentes, entretanto, mostra-se o poeta mais ameno e, de certo modo, mais romântico. Poema para Clara, por exemplo, é um deles. Não só pela forma arcaica do soneto por ele utilizada, mas por algumas construções frasais inéditas e pelas metáforas diferenciadas. Criativamente, o poeta inquieta-se mais uma vez e sem perder a essência da sua verve, permite-se caminhar por caminhos mais suaves emocionalmente.
No hai-kai Da História, essa minha desconfiança inicial confirma-se nos versos novos da mudança: “revolução? esqueça / chega de afiar guilhotinas / e perder a cabeça.”
Em outro hai-kai, Dos Poetas, a confirmação do insighting e da disposição para talvez seguir caminhos inusitados ditados pela nova consciência: “poesia? é questão de fé / torna-se um Sidarta / ou um São Tomé.”
Os seus textos confirmam: o bardo sobreviveu a si mesmo e às suas convicções ideológicas. Aguardemos, assim, quais serão os novos rumos do poeta kami-quase.

Recife, 2014

sábado, 5 de abril de 2014

Salve Olinda, eternamente linda!


SALVE OLINDA, ETERNAMENTE LINDA!

Clóvis Campêlo

Sempre te vi e sempre te amei, Olinda!
Sempre me vi atraído por tuas ladeiras íngremes, cobertas de pedras portuguesas!
Sempre adorei olhar as tuas varandas coloniais, onde o passado se debruça para ver o futuro chegar!
Para mim pouca importa o teu título pomposo de Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade.
Sempre te vi altaneira, olhando com desdém para a planície onde o Recife insistiu em se plantar.
Sempre curti os teus hippies fedorentos que insistem em negar a ordem e o progresso.
A ti, ofereço o espanto dos meus olhos, minha imagem cansada, quase sexagenária, que se alimenta do teu ar salitroso.
Oh Olinda, eternamente linda, que bela situação a tua, erguida sobre sete colinas.
Quanta fé me irradia o teu carnaval profano e o silêncio profundo das tuas igrejas centenárias.
A ti, ofereço as minhas mãos calejadas de uma poesia inútil.
A ti, ofereço as cicatrizes das minhas retinas sensibilizadas com a tua eterna beleza.
Salve o verde dos teus mares, o azul dos teus céus, o vermelho do teu sangue libertário.
Salve a ti, Olinda eternamente linda!
Recife, 2011

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Borboleta


BORBOLETA

Clóvis Campêlo

Borboleta:
solta, livre, leve.
Quem se atreve?

Recife, 2007

terça-feira, 1 de abril de 2014

Uma poesia sem angústias


UMA POESIA SEM ANGÚSTIAS

Clóvis Campêlo

Dizem que as amizades nascidas virtuais são como amor de carnaval e logo se acabam. Mas, não sei bem se é assim. Na internet, tenho conhecido pessoas extraordinárias e que conseguem mexer comigo e com a minha maneira de ser. Uma delas, foi a poetisa mineira Elane Tomich.
Libriana, nascida em Belo Horizonte no dia 9 de outubro (mesmo dia em que nasceu o ex-beatle John Lennon), tem como qualidade latente a crença de que dias melhores sempre virão. O amanhã sempre lhe será melhor e os problemas possíveis servirão cada vez mais para exercitar-lhe a capacidade de sobrevivência. Isso nunca me foi dito por ela diretamente, mas reflete-se com intensidade nas suas postagens facebookianas e nos seus textos e poemas.
Acaba de lançar o livro “Véspera de mim”, do qual me foi enviado gentilmente um exemplar. Dele me sirvo para sedimentar os meus pontos de vista sobre a sua pessoa e a sua obra, certificando-me assim do que a minha capacidade de observação e a minha intuição já me indicavam.
Nos versos do poema que dá nome ao livro, por exemplo, já se anuncia esse libelo esperançoso:

“Hoje é véspera de mim. / Amanhã, quando amanhecer / Terei um filho que verei crescer / Serei para sempre muito mais que assim / E vestirei meu contentamento / Passado a limpo por forte tormento / E em grande orgia de despojamento / Será queimado o meu testamento”.

Nada mais autobiográfico do que a estrofe acima. Talvez por isso, por conta desse otimismo desenfreado, em um mundo cada vez mais dominado pelo receio do futuro, o seu sorriso sempre franco e aberto, a sua expressão de menina feliz, mesmo já entrando na fase madura da vida, ao lado dos filhos e netos.
E esse é o seu canto de amor, de esperança, de fé e de credo, que suplanta qualquer ideologia possível para exaurir-se em energia transformadora, em energia do bem. Mostra-se a poetisa acima do bem e do mal, não em delírio inútil e desvairado, mas na sua capacidade de interpretar positivamente todas as nuances da vida, todas as alegrias e falsetas que lhe são servidas (e a todos nós outros, humanos) pela existência. O que a diferencia de outros seres e pessoas, na vida e na poesia, é essa disposição transformadora e de superação. A sua música sempre nos traz latente uma nova mensagem de esperança.
No poema “Ainda que seja cedo”, mais uma demonstração dessa sua capacidade de simplesmente ser feliz:

“Ainda que seja cedo / que o sol desbrilhe por medo / atrás de uma nuvem de chuva / em ameaça de morrer / ao se jogar do telhado.
…..
Nessa noite encompridada / pela luz que emudeceu / nosso amor brinca sem medo / ainda que seja cedo!”

É tão intensa a alegria que existe nos textos de Elane Tomich que uma pequena crônica como essa é insuficiente para a explicitar. Fica latente em nós, a vontade de prolongar essa análise em outros comentários e artigos.

Recife, 2014