sábado, 3 de maio de 2014

Não me escutes nostálgico a cantar


NÃO ME ESCUTES NOSTÁLGICO A CANTAR

Clóvis Campêlo

Diz o cronista Ruy Castro que qualquer assunto pode servir de mote para uma crônica. Até mesmo a falta de assunto, usada com maestria pelo cronista, pode ser útil. Afinal, a arte de falar muito e dizer muito pouco ou quase nada também é um direito do escrevinhador.
E foi assim, sem assunto, que comecei o presente texto. Confesso, porém, que isso às vezes isso também me assusta. Lembro de um personagem de Lima Barreto, cronista social, que se mata em plena redação por não conseguir escrever a sua cronica diária para o jornal onde trabalhava. Nada mais terrível para o escritor do que a constatação de que não consegue mais escrever.
Lembro também de que a prática constante da escrita pode fazer com que o starting do ato de escrever seja acionado com facilidade. O pesquisador Leonardo Dantas Silva é um desses que escreve diariamente, mesmo que o produto final desse exercício não seja aproveitado de imediato ou requeira um aprofundamento posterior maior. Historiador convicto, porém,a ele não interessam as ficções, mas sim a pesquisa pertinaz e científica, a comprovação devida dos fatos e histórias a serem contados. Daí a sua credibilidade e a justa fama alcançada.
Eu, contudo, prefiro a fantasia. Ou melhor, o uso puro e simples da memória que refaz a lembrança dos fatos ocorridos a medida em que o tempo passa. E, quando ela, a memória, mostra-se insuficiente, liberar a imaginação com as suas asas libidinosas de libélula. Nesse sentido, o passado próximo ou distante é sempre um manancial a ser utilizado.
O passado, aliás, já devidamente consumado, consumido e interpretado, não nos oferece mais o perigo da sobrevivência. E se a ele sobrevivemos, temos o mérito e o direito de narrar essa odisseia. Afinal, sempre será de responsabilidade dos vencedores e sobreviventes a obrigação e o direito de contar essa história. Aos perdedores que ficaram ao longo do caminho, as batatas! As rosas e os mortos não falam! Quando muito, a voz calada dos mortos, por uma questão de generosidade ou justiça imaginada, pode estar embutida na narrativa vitoriosa dos vivos. E nada mais do que isso.
Afinal, o coração e o mundo tem razões que a própria Razão desconhece. Fatores intrínsecos e nem sempre muito bem compreendidos é que movimentam a roleta das mudanças e do entendimento, além, é claro, dos interesses mesquinhos dos que podem interferir nesse rumo e não o fazem ou o fazem de maneira tendenciosa, o que é muito pior.
Se as águas inertes do passado não movem mais o moinho do mundo, embora possam servir de alimento aos poetas, são as águas incertas do futuro que trarão o porvir.
E nelas, espero que nunca me escutes nostálgico a cantar.

Recife, 2014

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