terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Soneto do inesperado



SONETO DO INESPERADO

Clóvis Campêlo

O inesperado acontece
esgarçando malha coesa,
mas a surpresa é quem tece
à chama do acaso acesa.

Faz-se o impossível possível,
caminha o equilíbrio a esmo,
fixa-se o novo impassível,
o prumo não é o mesmo.

Diante de tamanho espanto,
o espírito compulsivo
despoja-se do seu manto,

projeta-se e decisivo,
entoando o novo canto,
aceita-o em definitivo.

Recife, 1991


domingo, 26 de fevereiro de 2012

Sangue e Coca-Cola



SANGUE E COCA-COLA

Clóvis Campêlo

Ao entrar na sala percebera na parede do lado direito a imagem de uma loira do tipo Marylin Monroe montada sobre uma imensa garrafa de coca-cola.
Os cabelos oxigenados e o largo sorriso da loira deixavam transparecer um ar de felicidade consumista e uma embriaguez que não combinavam com a tensão que experimentava.
A estampa da loira radiante, aliás, lembrara-lhe de uma cena cinematográfica onde uma imagem semelhante aparecia em néon ocupando toda a parede lateral de um prédio alto.
Não sabia, no entanto, porque todas estas lembranças lhe vinham à mente, naquele momento, já que de nada lhes serviriam.
Pode ver ainda que sobre o pequeno móvel, escuro e torneado, estavam inúmeras garrafas vazias do refrigerante. Como diria o Aires, seu amigo politizado, fosse quem fosse que ocupasse aquela sala era uma pessoa coca-colonizada.
Estranho aquilo. Como poderia alguém consumir impunemente tanto refrigerante assim? Como poderia alguém exercer qualquer atividade naquele cubículo escuro e infecto?
De início, percebera aquilo tudo com dificuldade considerando a pouca luminosidade existente no local. Agora, com a vista já adaptada, podia ver com mais detalhes o local.
Em frente, sob a janela fechada, estava uma escrivaninha repleta de livros, pastas e papéis, colocados sobre ela de forma desordenada.
Por sobre a janela, na mesma parede, estava um grande relógio parado, como a indicar que para aquela pessoa o tempo era um elemento com o qual não deveria se preocupar.
Sentia, no entanto, que parecia estar ali há séculos, a espera de algo que nem mesmo sabia o que era. Por que entrara ali, naquela porta entreaberta, naquele dia? Que impulso esquisito o levara àquela sala escura e suja? Isso, não poderia responder. Sabia apenas que agora era tarde demais para voltar atrás! Não mais havia tempo para arrependimentos tardios. Tinha que seguir em frente. Sabia que era assim e assim seria.
Na parede do lado esquerdo, havia duas prateleiras onde várias caixas pequenas se amontoavam ao lado de uma pilha de jornais. De longe, podia sentir o cheiro da poeira e do papel velho amarelado. Para que diabo serviria aquilo? O que haveria dentro daquelas caixas que pareciam não serem abertas há tanto tempo?
Sob as prateleiras, um pequeno sofá preto e rasgado. Sobre o móvel, uma pele de gato-do-mato curtida, onde os dois olhos mortos eram as únicas coisas que luziam naquele recinto escuro.
De repente, abre-se a porta espalhando uma claridade intensa e alguém entra na sala. De relance, ainda pode ver o brilho de surpresa e medo nos olhos do recém-chegado, antes de apanhar uma das garrafas vazias e estourá-la na sua cabeça.
Saiu em disparada pelo corredor, enquanto o corpo caía e o sangue se espalhava pelo chão sujo da sala.

Recife, 2007


sábado, 25 de fevereiro de 2012

O Terreiro de Santa Bárbara



Fotografia de Clóvis Campêlo/2000

O TERREIRO DE SANTA BÁRBARA

Clóvis Campêlo

Situado na Rua Severina Paraíso da Silva, no bairro de Beberibe, em Olinda, é um dos terreiros mais tradicionais da Nação Xambá em Pernambuco.
No ano de 2000, o Terreiro comemorou 70 anos de funcionamento, 100 anos do nascimento da ialorixá Maria Oyá, fundadora da casa, e 50 anos de reabertura do terreiro, fechado em 1938, no período do Estado Novo.
Para comemorar as três datas, no dia 17 de dezembro de 2000 foi realizado um toque para Iansã (Santa Bárbara, no sincretismo religioso), deusa dos ventos e das tempestades e orixá patrona da casa. Durante o toque, foi lançada a Cartilha da Nação Xambá.
A publicação fala sobre o povo Xambá, originário de tribos que habitavam os limites da Nigéria com Camarões, na África, e também sobre os 14 orixás cultuados no Terreiro.
No início de década de 20, o babalorixá Arthur Rosendo, fugindo da repressão às casas de culto afro-brasileiro em Maceió, veio para o Recife. Algum tempo depois, reiniciou as suas atividades em Água Fria.
Dentre as filhas de santo por ele aqui iniciadas, estava Maria das Dores da Silva, a Maria Oyá, que no dia 7 de junho de 1930 inaugurou o seu terreiro no bairro de Campo Grande.
Até hoje o terreiro conserva entre as suas tradições os rituais seculares da Nação Xambá. Os cantos são entoados na língua africana iorubá. Além disso, é o único que adota o regime matriarcal no seu comando.
Na época das festividades, o Terreiro de Santa Bárbara era comandado pela mãe-de-santo Donatila Paraíso do Nascimento, hoje já falecida.

Recife, 2008


sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Bajado, um artista de Olinda




Fotografias de Clóvis Campêlo/1991

BAJADO, UM ARTISTA DE OLINDA

Clóvis Campêlo

Pintor primitivista que se intitulava "Um artista de Olinda", nasceu na cidade de Maraial, na Zona da Mata Sul de Pernambuco, em 1912. O seu nome de batismo era Euclides Francisco Amâncio. Em 1930, mudou-se para o Recife, fixando-se posteriormente em Olinda, onde durante anos morou na casa de nº 186 da Rua do Amparo. Iniciou pintando cartazes para cinemas e letreiros para lojas e açougues.
Em 1960, começou a dedicar-se à pintura de telas com tinta esmalte. A arte ingênua de Bajado tornou-se conhecida internacionalmente. O artista chegou a ser considerado pelo jornal francês Le Monde como um dos maiores pintores primitivista do mundo. Faleceu em 1996, aos 84 anos de idade.
Fotografei Bajado em 1991, na sua casa, em Olinda. Já doente e quase cego, desenhava compulsivamente. Com uma caneta hidrocor se auto-retratava e fazia inúmeros desenhos dos cow-boys americanos Tom Mix e Buck Jones. Todos estes desenhos, feitos naquela ocasião, foram guardados pelo também poeta e fotógrafo José Rodrigues Correia Filho, que me acompanhava. Apaixonado por futebol e torcedor fanático do Santa Cruz, fez inúmeras telas retratando o tema e o time coral.
Embora reconhecido internacionalmente, morreu pobre e sem recursos para financiar os tratamentos de saúde que necessitava.
Bajado não foi apenas um artista de Olinda, mas um patrimônio da cultura pernambucana.


Recife, 2012

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Frevos e maracatus












FREVOS E MARACATUS
Fotografias de Cida Machado e Clóvis Campêlo
Recife, 2012

A síntese



A SÍNTESE

Clóvis Campêlo

Neguei todos os preceitos
como quem renega a vida,
atingindo o próprio peito,
dilacerando a ferida

(a mesma mão que afaga
acende o fogo e o apaga).

Fiz do mundo o seu avesso,
vestido de manto espesso
para ser inacessível,

e conclui o desfecho
na imensidão do impossível.

Recife, 2011


terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Entre Olinda e o Recife

















ENTRE OLINDA E O RECIFE
Fotografias de Cida Machado e Clóvis Campêlo
Recife e Olinda, 2012

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Troça Carnavalesca Mista Lenhadores da Mangabeira







TROÇA CARNAVALESCA MISTA LENHADORES DA MANGABEIRA

Clóvis Campêlo

Enquanto no sábado de Zé Pereira o Galo da Madrugada toma conta do Recife e arrasta uma multidão para o bairro de São José, no domingo é dia das pequenas troças desfilarem na Boa Vista, no Pátio da Santa Cruz.
É o caso da Troça Carnavalesca Mista Lenhadores da Mangabeira, bairro pobre do Recife, localizado entre o Alto José do Pinho e a Bomba do Hemetério, com uma população de mais de 7 mil habitantes, segundo o Censo 2000 do IBGE.

Recife, carnaval 2012

A antítese



A ANTÍTESE

Clóvis Campêlo

Queria a revolução,
toda a mudança possível,
toda a certeza do não,
queria todo o não crível:

sabia que em pleno avesso
haveria um recomeço.

Não contava, no entanto,
que para toda alegria
haveria o mesmo pranto,

que todo não era um sim,
e todo começo, um fim.

Recife, 2007


- Publicado no livro Antologia 2007 dos Poetas Independentes, Recife, Editora do Livro Rápido, 2007, página 43.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Esperando o Galo




ESPERANDO O GALO

Clóvis Campêlo

Desde o ano passado que o Galo da Madrugada mudou o seu tradicional percurso, deixando de circular pela Rua da Concórdia, estreita e repleta de casarões antigos, e passando a circular pela Avenida Dantas Barreto, no bairro de São José.
Pois bem, se isso trouxe vantagens para os organizadores e foliões, também deixou a Rua da Concórdia livre para que as pequenas orquestras de frevo circulem e animem a moçada enquanto o Galo não chega.

Recife, 2012

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

A Troça da Besta Fubana












A TROÇA DA BESTA FUBANA


Clóvis Campêlo

Criada em 2006, a Troça da Besta Fubana desfilou dois anos no carnaval do Recife e depois se recolheu. Este ano, voltou a desfilar e animar o carnaval do Recife Antigo.
A concentração foi na Rua da Guia, no restaurante Sabor de Pernambuco, na noite do dia 14 próximo passado.

Depois de organizada e devidamente turbinada, a troça saiu pelas ruas do bairro histórico, animando ainda mais a semana pré-carnavalesca.
Nem mesmo a falta de energia elétrica, que por alguns minutos escureceu a Rua da Guia, arrefeceu o ânimo da tropa fubânica.
O registro fotográfico foi feito por Cida Machado, a fotógrafa foliã.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Amor à primeira vista


A seleção do Irã com a camisa coral
-
AMOR À PRIMEIRA VISTA

Clóvis Campêlo

Desde pequeno que sempre gostei de futebol. Diziam que eu levava jeito para jogar, ao contrário do meu irmão mais novo, Carlinhos, que era completamente desengonçado com a bola nos pés. Acho que herdou a inabilidade paterna.
O meu pai nunca gostou de futebol. Contava que a sua única e frustada tentativa de praticar o esporte bretão se dera na juventude, em Jaboatão dos Guararapes. Escalado para jogar de zagueiro, deu uma furada hilariante na primeira bola que veio em sua direção, enganando o goleiro do seu time e abrindo caminho para a derrota. Foi tirado do time e nunca mais voltou a jogar.
Assim dito, fica plenamente compreensível que eu tenha precisado buscar outras alternativas para alimentar e expandir a minha paixão futebolística.
Jogar, eu jogava na Rua Jeremias, na praia do Pina, no areial do Aeroclube, numa época em que os espaços urbanos livres ainda permitiam isso. Ir aos estádios, porém, era diferente. Ainda menino, precisava de alguém para me acompanhar. A solução era apelar para os meus tios maternos, Luís e Maurício, ambos torcedores do Clube Náutico Capibaribe.
Para desespero deles, no entanto, não segui o caminho por eles trilhado de torcer pelo clube alvirrubro pernambucano. Bastou-me ver o Santa Cruz entrar em campo, nos Aflitos, numa tarde ensolarada de domingo, para perceber que aquele era o clube do meu coração. Meus tios esmoreceram, desanimaram. Haviam reforçado o inimigo. Nosso caminhos futebolísticos se separavam ali, nas arquibancadas da vida.
Meu tio Luís não jogava nada. Mas Maurício era habilidoso. Atuava no Botafogo do Pina, time suburbano organizado e mantido pelos filhos do tenente Beltrão. Morávamos na mesma rua, éramos vizinhos. Descubro, feliz, que o tenente Beltrão torcia pelo Santa Cruz. Mais do que torcedor, aliás, era sócio patrimonial e não perdia um jogo. Estava resolvido o meu problema. A partir daquela data, passei a integrar a comitiva coral que saia da Rua Jeremias, em dias de jogo, a bordo de um Buick azul, rumo aos estádios do Recife.
Naquela época, no início dos anos 60, o Santa Cruz ainda não tinha o Estádio do Arruda, que só viria a ser inaugurado em 1969. O jeito era ver o time jogar na Ilha do Retiro e nos Aflitos, estádios alheios.
Só fui a um estádio de futebol com o meu pai pela primeira vez em 1972, no Arruda, durante a Copa Independência, realizada no Brasil pela Confederação Brasileira de Desportos para comemorar a conquista do tri mundial, no México, dois anos antes.
Não vimos a seleção brasileira atuar, mas chegamos a ver a seleção do Irã, vestindo a camisa gloriosa do Santa Cruz, enfrentar a Irlanda, num empate de 2x2.
Para mim, foi um momento de grande felicidade.


terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Com açúcar e sem afeto


Glória Swanson
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COM AÇÚCAR E SEM AFETO

Clóvis Campêlo

Vejo em uma revista que Madonna, a grande artista pop, não consome açúcar branco refinado e nem permite que seus filho o façam.
A atriz Glória Swanson, diva do cinema americano, já falecida, também pensava assim. Dizia que não permitia a entrada do açúcar refinado nem na sua casa, quanto mais no seu corpo. Coincidência ou não, Swanson, que também praticava hatha yoga, passou dos 80 anos sempre bela e elegante
Um dos seus últimos maridos, o jornalista William Duft, escreveu um livro interessantíssimo chamado "Sugar Blues", em que estuda a chegada do açúcar no Ocidente, na Idade Média, através da cana-de-açúcar introduzida pelos árabes na Península Ibérica, e a sua influência no comportamento e no modo de pensar do homem moderno.
A escritora brasileira Sônia Hirscth, em um dos seus livros sobre alimentação natural, afirma que na Idade Média o açúcar refinado era um artigo tão caro e desconhecido que os nobres europeus o consumiam em bandejas de prata nas festas palacianas como um excitante exótico.
O cientista japonês George Oshawa, que no começo do século XX sistematizou e introduziu a filosofia e a alimentação macrobiótica no Ocidente, considerava o açúcar branco refinado como o inimigo nº 1 da humanidade. Segundo ele, o açúcar para ser metabolizado rouba cálcio e vitamina B do organismo humano. Ou seja, desalimenta.
Oshawa morreu aos 76 anos. Segundo os seus seguidores, supostamente envenenado. Juntamente com um físico francês, cujo nome não lembro no momento, ele havia descoberto como transformar cobre em ouro. Por se negar a fornecer a fórmula às grandes potências ocidentais, teria sido envenenado para que o segredo não caisse em mãos inimigas. A sua viúva, Lima Oshawa, também adepta das formas naturalistas de vida e alimentação, faleceu com mais de cem anos.
Para nós, nordestinos brasileiros, descobrir a malignidade do açúcar é terrível.
A sua cultura nos forjou a história, destruiu as nossas matas originais, contaminou os nosso rios, provocou guerras absurdas e permitiu o surgimento de sociologias explicativas dos nossos extâses e declínios sociais e econômicos. De certo modo, justificou a casa grande e a senzala. E quando os engenhos foram substituídos pelas usinas produtoras de açúcar, agudizou as desigualdades no campo e criou uma nova elite social e dominante.
"Sugar fields forever", como já disse o poeta ao observar a paisagem monótona e desequilibrada dos nossos campos.
Com açúcar e sem afeto.

Recife, 2010