sexta-feira, 21 de julho de 2017

Martha no Recife


MARTHA NO RECIFE

Clóvis Campêlo

Comecemos pelo começo, por onde se deve sempre começar.
No Marco Zero, onde se inicia o mundo, visitaremos a obra de Cícero Dias. Em obediência à rosa dos ventos, contemplaremos a cidade se expandindo em círculos concêntricos em busca da sua própria identidade e em busca dos poetas pernambucanos representados no Circuito da Poesia.
Ali mesmo, ao lado, reverenciaremos Naná Vasconcelos, com sua escultura e o seu berimbau, que providencialmente estabelece uma ligação indissolúvel entre as culturas da Bahia e de Pernambuco.
Na Rua da Moeda, saudaremos Chico Science, uma antena fincada no mangue onde mais uma vez Pernambuco falou para o mundo, e a sua revolução de beats e bites. Afinal, sempre fomos caranguejos com cérebros.
Às margens do Rio Capibaribe, sob a sombra generosa do seu chapéu de poeta, auscultaremos Ascenso Ferreira em busca de diagnosticar e identificar os ruídos modernistas que sempre o acometeram. O poeta, que nunca teve nada de besta, escolheu um lugar importante e simbólico para plantar a sua escultura. Ali, com certeza, sempre coube e sempre caberá um verbo transitivo direto.
Na ponte Maurício de Nassau, sem pagar nenhum pedágio à poesia, saudaremos o poeta Joaquim Cardozo, o engenheiro do poema, sempre atento aos entardeceres da cidade e aos transeuntes constantes e passantes. Talvez até, escutemos histórias sobre um tal boi voador. Afinal, o tempo decorrido sempre mistura memórias e imaginações.
Seguiremos adiante, passando pela Rua 1º de Março e chegando à Praça da Independência, onde Carlos Pena Filho, elegantemente trajado, entre putas, loucos e lúmpens, aguarda a hora de acender os seus poema no Bar Savoy. Seu olhar sereno contempla diuturnamente a Matriz de Santo Antônio, em torno da qual a cidade cresceu e apodreceu. Tudo no seu devido tempo.
Incólumes, atravessaremos a Avenida Guararapes, onde a vida ainda pulsa, e saudaremos Capiba na outra margem do Capibaribe. De costas para o rio, Capiba continua se guardando para quando o carnaval chegar. Nos bolsos de pedras, partituras e novas canções escondem-se contidas pela dureza da realidade implacável. Afinal, em determinados momentos, só nos cabe a inércia.
Como o Recife se fez sobre pontes e overdrives, mais uma vez cruzaremos o rio, com a naturalidade de um cão atravessando uma rua, e na paisagem úmida daquele lougradouro, após contemplarmos os casarões malassombrados da Rua da Aurora, encontraremos a secura dos poemas de João Cabral de Melo Neto, que, sentado à beira do caminho, não se cansa de contemplar o Recife da sua época. Naquele trecho do rio, onde um dia o escritor Suassuna tomou banho nu e onde os botos costumavam encantar os habitantes da cidade nos primórdios do século passado, ainda existe poesia suficiente para paralisar o poeta e seus admiradores.
Então já teremos traçado um longo trajeto, o que, para uma moça poetisa da Bahia, talvez seja uma overdose. O cheiro doce do rio, misturando-se com a brisa salobra do mar, poderá lhe causar vertigens.
Entretanto, nada disso importará desde que as emoções sobrevivam.