quarta-feira, 31 de outubro de 2012

A Rua da Aurora


A RUA DA AURORA

Clóvis Campêlo

Situada nos bairros da Boa Vista e de Santo Amaro, no Recife, a Rua da Aurora nasceu no começo do século XIX, com o aterro de uma área de pântano localizada na margem esquerda do rio Capibaribe, pertencente ao comerciante Casimiro Antônio Medeiros.
Considerada uma das ruas mais características da cidade, por estar voltada para o rio e ainda conservar casarões autênticos do século XIX, tem esse nome por receber o sol em cheio nas primeiras horas da manhã.
Dez anos após a assinatura da Lei do Ventre Livre, promulgada pelo visconde de Rio Branco em 28 de setembro de 1871, dando liberdade aos filhos dos escravos nascidos a partir daquela data, deram-lhe o nome de Rua Visconde de Rio Branco, mas a mudança não vingou.
Graciosa por natureza, a Rua da Aurora foi endereço do conde da Boa Vista, governador de Pernambuco, e outras famílias nobres.
O conjunto urbano foi projetado pelo engenheiro José Mamede Alves Ferreira, em 1855, mas os primeiros sobrados foram construídos em 1841, situados entre as ruas do Riachuelo e Princesa Isabel.
A primeira construção foi a casa de nº 405, que serviu de moradia para o Conde da Boa Vista. Levantamento histórico feito pela Fundarpe indica que o palacete foi construído pelo corpo do comércio e oferecido ao Conde.
O prédio tem estilo diferente dos demais, com colunas dóricas encaixadas, suntuosa sacada no primeiro andar e o brasão colorido de Pernambuco no frontal clássico.

Recife, 2008


sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Andarilho blues


ANDARILHO BLUES

Clóvis Campêlo

Perdido pela cidade
me encontro em tons azuis,
roques, baladas e blues,
toda a musicalidade

que emerge das suas ruas:
o som sereno do rio,
os cães latindo no cio,
gatos miando pra lua;

o ruído dos motores,
as frenéticas buzinas,
o vapor que contamina,
a vida em estertores.

Perdido pela cidade,
olhando a face do povo
em busca de algo novo,
procuro a felicidade.

Recife, 2010

sábado, 20 de outubro de 2012

As características da arte moderna


Picasso

AS CARACTERÍSTICAS DA ARTE MODERNA

Clóvis Campêlo

Segundo José Guilherme Merquior no livro "Formalismo e tradição moderna: o problema da arte na crise da cultura", de 1974, é dentro da própria consciência geradora do saber da cultura ocidental que a estética moderna encontrará campo para dar vazão ao sentimento de insatisfação que a invade. Mostra-nos o autor que nada "poderia ser mais eloquente do que a simples menção da influência de duas ciências humanas na arte moderna: a psicanálise e a antropologia". E ambas se prestam a esse papel por provocarem constantes "deslocamentos" no pensamento que as gerou. Assim, munidos de novos "instrumentos", os artistas modernos encontram condições de manifestar a negação e a perplexidade da arte em relação aos caminhos dos tempos contemporâneos. Valorizando os impulsos libertários do inconsciente, bloqueados pela ética do pensamento conservador, os modernos passam a salientar o "caráter repressivo do princípio da realidade" como uma limitação às possibilidades vitais do homem. Assumem, desse modo, uma postura "vocacionalmente surrealista", instalando, no bojo do seu pensamento, a "mística da liberdade espiritual", fonte da contracultura de vanguarda no final do século passado.
A desconfiança da arte moderna ante os valores da cultura ocidental faz com que, juntamente com a vontade de ruptura cultural, desenvolva-se, na primeira, uma tendência ao hermetismo. Tal tendência intensifica o isolacionismo cultivado pelo artista a partir do pós-romantismo, afastando, com desdém, a estética moderna das massas (muito embora estas se mostrem cada vez mais alfabetizadas) e encaminhando a arte moderna para uma postura semântica elitista. O poeta moderno cerca de obstáculos o acesso ao significado da mensagem poética e, almejando alcançar um público seleto, cria obras que jogam com significados incertos, esquivos e obscuros.
Por compreender que o fácil entendimento das obras significa a banalização e a alienação da informação (tal assertiva torna-se interessante em um mundo caracterizado pela "democratização" da informação e pela proliferação do simulacro enquanto meio de consciência cósmica, ao mesmo tempo em que serve para desnudar mais um aspecto contraditório das artes modernas), o bardo moderno envereda por caminhos esotéricos e inusitados (mudança quanto ao conteúdo), enquanto adota contra a linguagem comum (alteração quanto à forma) o que Ramon Jakobson, numa tentativa de definir a literatura sob a ótica dos formalistas, classificou como "violência organizada".
Concomitantemente a esse movimento de afastamento das massas verificado na estética moderna, a arte de vanguarda experimenta uma "universalização dos horizontes mentais", estabelecendo entre os artistas modernos uma comunicabilidade definitivamente diluidora do sentimento de "cor local" dos românticos e que, transcendendo as nacionalidades, provoca o cruzamento de temas e estilos, em que pese cada literatura estar irremediavelmente ligada ao espírito da sua língua.
Desse modo, segundo a ótica de Merquior, são quatro os movimentos que caracterizam a passagem da arte romântica para a arte moderna: a mudança de uma concepção mágica de arte para uma concepção lúdica, desdobrada em visão grotesca (jogo quanto ao conteúdo) e experimentalismo (jogo quanto à forma); transformação da oposição cultural romântica em ruptura; afastamento das grandes massas e tendência para o hermetismo, e, encaminhamento da poética atual para o cosmopolitismo e para um futuro planetário.
No entanto, se o primeiro movimento faz com que a arte moderna manifeste uma saudável tendência de revigoramento e renovação, ao mesmo tempo em que nega os valores culturais que contradizem a afirmação humana, tendência essa confirmada no movimento de ruptura (afastamento), o terceiro movimento (elitização e hermetismo) é contraditório e caminha em sentido inverso aos anteriores. Por seu lado, o quarto movimento (cosmopolitismo) parece nos indicar que a grande arte, perdida a sua função mágica e situada em uma cultura de massa onde prevalece a divisão de classes (característica supranacional), exercita essa permeabilização universalista como forma de uma adaptação necessária à sua sobrevivência.
Para finalizar, consideremos que o conceito de arte moderna, ainda segundo Merquior, prende-se muito mais aos fatores internos observados nas obras de arte do que a sua contemporaneidade. Tal fato se deve a permanência, ainda hoje, na tradição da arte moderna de elementos românticos não submetidos ao novo estilo e que atuam como fatores de estreitamento e de enfraquecimento da arte moderna, reduzindo a sua capacidade de elaboração de uma crítica da cultura e diminuindo a sua energia criadora. Dessa maneira, nem toda a arte contemporânea pode ser considerada "arte moderna", assim como podemos estabelecer a existência de diversos graus de "modernidade".

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Poema para Saramago


POEMA PARA SARAMAGO

Clóvis Campêlo

Quando chegares aos céus
não mais terás consciência
para percebê-lo.
Serás etéreo, vapor,
nuvem passageira.
No entanto, também serás
a essência preservada
da natureza,
simples circunstância.
O teu, era um sonho
terreno, consistente,
feito em rocha,
não mais caberia
nas nuvens.
O que te alimentava
era o desvendar
e a recriação constante
do código dos homens.
Nada era definitivo
e a verdade escondia-se
nas entrelinhas.
Talvez tenhas sido
o bobo da colina
ou o último guardião
das possibilidades negadas.
Teu vulto frágil
era assustador
e o verbo, desde
o princípio, recusava
o sonho inútil
e o tempo desperdiçado.

- Publicado no jornal Folha de Pernambuco, Recife, quinta-feira, 24/6/2010, Caderno Programa.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Sufragando e naufragando no vermelho



SUFRAGANDO E NAUFRAGANDO NO VERMELHO

Clóvis Campêlo

Eleição é sempre um tempo de reencontro, conosco mesmo e com os outros.
Lembro que no já longínquo ano de 1982, em plena Avenida Guararapes, no centro do Recife, às vésperas de mais uma eleição, com o democrata (a palavra ainda não havia sido deturpada) Marcos Freire disputando o governo do Estado contra o biônico Roberto Magalhães, ao lado dos amigos Valmir Sá e Gílson Ayres (já falecido) discutíamos sobre em quem votar.
Enquanto Gílson defendia o voto no incipiente Partido dos Trabalhadores, que tinha em Manoel da Conceição (torturado e o mutilado por um dos governos da ditadura militar), eu e Valmir defendíamos o “voto útil” no PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro), surgido naquele mesmo ano após uma fusão do antigo MDB com o Partido Popular (PP) de Tancredo Neves, em nome da restauração da democracia e pelo fim do regime arbitrário que mesmo exaurido ainda se mantinha. Além do mais, Miguel Arraes estava de volta, após o exílio na Argélia, e era preciso fazer-lhe justiça, elegendo-o deputado federal.
Arraes se elegeu deputado federal com 191.471 mil votos, votação recorde em todos os pleitos estaduais até então, abrindo caminho para o seu retorno ao executivo estadual, em 1986.
No entanto, para governador, perdemos todos nós. O petista Manoel da Conceição teve uma votação irrisória e Marcos Freire, inesperadamente, foi derrotado por Roberto Magalhães. A democracia ainda engatinhava, pensávamos nós, e na sua imaturidade ainda permitiria aquele equívoco.
Anos depois, às vésperas de uma outra eleição estadual, reencontro Gílson Ayres em plena Avenida Conde da Boa Vista, também no centro do Recife. Sem a presença de Valmir Sá, reavaliamos as nossas posições. Eu, finalmente, havia optado e postava no peito a estrela vermelha do PT, na esperança de uma revolução para a esquerda que sucedesse a revolução que já tínhamos sofrido para a direita. Para minha surpresa, Gílson era agora um direitista empedernido, criticando as utopias socialistas que ainda me alimentavam alma e fazendo campanha para o mesmo Roberto Magalhães que havia sido governador biônico do regime militar. Mudanças, mudanças, mudanças...
Penso nisso agora que, depois de muitos anos votando no Partido dos Trabalhadores, abri mão dessa prerrogativa para votar em um candidato olímpico, Roberto Numeriano, do Partido Comunista Brasileiro. O que me levou à isso? A patifaria interna do PT na escolha do seu candidato, jogando no lixo a propalada democracia interna e, sob a mão de ferro do Diretório Nacional, empurrando-nos goela abaixo um candidato “biônico”, o senador Humberto Costa. Com esse gesto de autoritarismo, muitas foram as perdas para o partido e isso se refletiu diretamente na campanha e na eleição. O partido encolheu, no Recife, perdendo vereadores, a prefeitura e o respeito dos seus eleitores.
Durante a própria campanha, refletiu-se também na falta de rumo e propostas do candidato petista. Foi uma campanha mal feita e desorientada. Entendo que isso tudo prejudicou o desempenho do partido muito mais do que o julgamento do famigerado mensalão.
Passado o cataclismo, penso que resta ao Partido dos Trabalhadores calçar as sandálias da humildade, fazer um mea culpa e, principalmente, retomar os rumos e as ligações sociais que fizeram desse partido uma agremiação única na história partidária brasileira. Se isso não acontecer, não acredito que ele possa sobreviver com a dignidade e a retidão suficientes para levar em frente um projeto nacional, de reforma política e administrativa desse país.
Precisamos de revoluções benignas na educação, na saúde pública, na habitação, no transporte coletivo e em outras áreas que devem ser monitoradas e administradas sempre pelo poder público.
Para mim, hoje, não interessa à caça às bruxas. Quem deve, deve pagar pelo que fez. No entanto, não somos tolos o suficiente de acreditar que a “justiça” é neutra e justa. O jogo pelo poder é muito mais sujo e hipócrita do que imagina a nossa vã filosofia, e ao PT também cabe a culpa de ter acreditado e apostado nele.

Recife, 2012

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Amsterdão não é aqui!


AMSTERDÃ NÃO É AQUI!

Clóvis Campêlo

Não só o Haiti não é aqui, como vaticinou o poeta baiano, mas também Amsterdã.
Consta que o mundo é apenas um só.
O que mudam são as visões, os olhos de quem o vê.
O olho olha e vê e sente o que quer sentir.
O olhar faz parte integrante da maneira de ser do fotógrafo.
Antes de fotografar, ele vê...
O registro, no celulóide ou nas retinas, é apenas um detalhe secundário e posterior. O importante é ver.
No entanto, embora o registro seja algo secundário e posterior, da sua efetivação dependerá muita coisa.
Se o registro ocorrer apenas nas retinas e na massa cinzenta do fotógrafo, que um dia os vermes da terra irão devorar, muita coisa não se terá ganhado. A humanidade será privada de compartilhar dessa visão idílica ou terrível (tanto faz!).
Se o registro se der na fita de celulóide ou no magnetismo digital, poderá ser multiplicado ad infinitum. Será perpetuada e muitos outros olhos e mentes a compartilharão no presente e no futuro.
A diferença fundamental é essa! Socializar as visões, tendo o cuidade, porém, de não se expor desnecessariamente.
E viva o simulacro!

Recife, 2006