segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Seja marginal, seja herói


SEJA MARGINAL, SEJA HERÓI

Clóvis Campêlo

É difícil imaginar o compositor Caetano Veloso, hoje rico e aburguesado, na televisão, cantando a marchinha “Boas Festas” com um revólver apontado para a sua própria cabeça. Em 1968, o Movimento Tropicalista era assim: radical, agressivo, atentando contra os chamados bons costumes culturais.
O programa Divino Maravilhoso, lançado na TV Tupi em outubro daquele ano, foi tirado do ar um mês depois. A televisão brasileira não estava preparada para ver aquele desbunde. Os serviços de segurança da ditadura militar, no entanto, já vinham de olho nas revoluções dos baianos.
A gota d'água, foi o show montado na Boate Sucata, no Rio de Janeiro, com o título de “Seja marginal, seja herói”. Segundo o jornalista Ricardo Alexandre, em matéria publicada no site da revista Super Interessante, espalhou-se que durante o show Gil e Caetano esculhambavam com o Hino Nacional Brasileiro. Segundo a Wikipédia, durante o espetáculo, compôs o cenário uma bandeira criada pelo artista plástico Hélio Oiticica com a inscrição “Seja marginal, seja herói”, com a imagem do traficante carioca Cara-de-Cavalo, que havia sido assassinado de forma violenta pela polícia carioca. Os donos do poder na época, os militares da ditadura, alegaram ainda que Caetano Veloso havia cantado o Hino Nacional de forma desrespeitosa, incluindo na letra versos desabonadores às Forças Armadas. Foi o suficiente para o show ser suspenso e os baianos serem presos e, posteriormente, exilarem-se na Inglaterra.
Foi por esse viés, camaradas, que o Tropicalismo chegou a Pernambuco e confrontou-se com o Movimento Armorial de Ariano Suassuna, que defendia a tradição cultural medieval brasileira e as armas e os brasões assinalados. Sinceramente, não havia como conciliar tudo isso em terras da pernambucália. Muito mais do que um confronto cultural, o conflito foi ideológico e político e se refletiu em atitudes do dia a dia de ambos os lados.
Assim, enquanto mestre Ariano Suassuna aceitava ocupar cargos públicos em governos biônicos da ditadura militar, encontrávamos Jomard Muniz de Brito, Aristides Guimarães e Celso Marconi, os principais arautos do Movimento Tropicalista paroquiano, nas passeatas de protesto e em outras atividades contestatórias, como o enterro do Padre Henrique, assessor direto do arcebispo Dom Hélder Câmara, brutalmente assassinado pelas forças da repressão. Era esse o contexto, era essa a diferença.
Era do Brasil do “Ame-o ou deixe-o”. As divisões eram nítidas, não havia espaço para indefinições ou dúvidas.
Hoje, passados mais de quarenta anos, parece-nos que tudo isso já foi devidamente digerido, enquadrado e assimilado. Ao menos para nós, o Movimento Armorial não mais nos parece tão retrógado e equivocado como naquela época, do mesmo modo que o Tropicalismo ficou muito mais caracterizado como um movimento destinado ao prazer conceitual de uma determinada elite intelectual brasileira.

Recife, 2014

- Publicado no livro Crônicas Recifenses, Recife, Clube de Autores, 2018

2 comentários:

Nelly Carvalho disse...

Parabéns , Clóvis
Muito equilibrado e imparcial: os revolucionários de ontem, onde estão?Cuidando da fortuna que rendeu sua arte.

Nasaindy Lua disse...

Cada um em seu tempo, sua experiência pessoal e coletiva, sua maneira de lutar e dialogar. É complicado comparar ações do passado no presente destas pessoas, esquecendo quem elas eram lá e qual papel exerciam naquele contexto. Independentemente disso o Brasil não é o país que é (e é grande de toda as formas) sem Caetano, Gil e Ariano Suassuna.