terça-feira, 26 de agosto de 2014

A hora de morrer


A HORA DE MORRER

Clóvis Campêlo

Nenhuma morte deveria ser antecipada. Ninguém merece. Deveríamos morrer assim, no fim da vida, dormindo, sonhando, apagando-se suavemente como uma chama que se autoconsome. A morte antecipada sempre é brutal. Como tudo na vida, possibilita interpretações várias, dependendo da síntese ideológica ou filosófica do observador.
Do mesmo modo, a morte antecipada é sempre uma traição, pois nega a crença de que possamos ter algum controle sobre algo, mesmo que esse algo sejam as nossas próprias vidas. No jogo de forças incompreensíveis e poderosas que regem o universo, somos partículas atômicas diminutas, sujeitas às intempéries do acaso (ou do caos).
Na nossa mente animal, porém, alimentamos a ideia de que a morte é algo a ser superada e anulada. Vivemos a ilusão de que caminhamos para um nível de conhecimento onde isso será possível. Afinal somos filhos e feitos à semelhança de Deus. E se a ele foi dado o direito de criar e administrar o mundo, demiurgo cósmico que é, por não será assim também com os seus filhos?
A angústia de um dia superar a morte, termina por se transformar, para nós humanos, em um sentimento maior do que a angústia por medo da própria morte. Já não admitimos mais que exista uma hora certa para morrer. O pensamento transborda, desliga-se da base material e perde o senso da realidade. Um verdadeiro delírio.
Assim, quando o trágico ressurge em nossos caminhos e antecipa um desfecho qualquer em qualquer uma das vidas por nós conhecidas, voltamos a nos indagar e a vacilar diante do fato inevitável e incontornável.
Voltamos a ter a percepção de que continuamos a ser uma poeira cósmica, sem eira nem beira, a mercê do que o destino, ou outra qualquer conjunção de forças incompreensíveis para nós, preparou. Percebemos que as forças da natureza são tão gigantescas e incontroláveis que voltamos a entrar em pânico. Não existe saída racional para a morte, do mesmo modo como não nos foi dada nenhuma escolha sobre a possibilidade de vivermos ou não. De repente, abrimos os olhos e tomamos consciência de que existíamos em um mundo que precisava ser traduzido. O nosso esforço vital, assim, passa a ser o exercício da sobrevivência do indivíduo para perpetuar-se a sobrevivência da espécie. De repente, fecharemos os olhos e seremos deslocados para outra dimensão existencial, onde, talvez, necessitemos de um outro aprendizado para uma nova sobrevivência, até que haja uma nova consumação.
Mas, para falar a verdade, nem mesmo disso temos certeza alguma. São puras conjecturas do nosso condicionamento racionalista. Por isso, a necessidade de voltarmos a confabular conosco mesmo em busca de um entendimento mais tranquilizador e que nos permita entrar em sintonia com um ritmo adequado de pulsação cósmica.
Somos e seremos sempre uma poeira cósmica na infinitude do universo.

Recife, 2014

9 comentários:

Nelly Carvalho disse...

Clóvis
O que você escreveu foi belo, trágico, profundo ..inexorável. Vamos todos passar por esta experiência de finitude e não poderemos transmiti-la a ninguém.

José Arimateia disse...

Boas as palavras.
A morte sempre acaba em pensamentos metafísicos, né.
Deus te ilumine!

Passiflora disse...


Estimado Clóvis saudações!
Este aspecto filosófico para mim é novo.
Gostei e achei o seu texto ótimo.
Parabéns.
Paulo

Maria Cristina Henriques disse...

Ótima reflexão num momento de tantas partidas.Umas temporãs,outras precoces par anossa visão humana.Para o transcendental,Kayrós

Dalva Agne Lynch disse...

Sendo a morte meu principal, interessou-me seu ponto de vista, maravilhosamente escrito (como era de se esperar, vindo de você. É sempre um prazer imenso ler seus textos.

Jomard Muniz de Britto disse...

Caro Clóvis,

No atentado do mês de setembro faço considerações, como sempre, famigeradas sobre o seu tema.
Por coincidência estive lendo um livro vermelho em homenagem a Hilda Hilst quando a morte é nossa eterna companheira de criação.
Abraços,

Glória Braga Horta disse...

Este é um assunto intrigante e perturbador. Penso muito sobre a morte e fico conjecturando coisas, como, por exemplo: será que os espíritos, se é que existem, pensam na possibilidade da existência do homem? Tão incrível para nós a continuidade da vida após a morte, deve ser para eles incrível também a possibilidade de viverem num mundo material. Sobre o pensamento de que somos apenas uma poeira cósmica na infinitude do universo, eu discordo, porque nós não somos poeira. Se formos partir para essa comparação, nós nem existiríamos na infinitude do universo. Tudo isso que falei são conjecturas minhas, apenas conjecturas, logicamente. Achei ótimo seu texto sobre este tema. Um abraço.

Marcos Mairton disse...

Muito interessante o texto, mas chamou-me especialmente a atenção ele ser ilustrado com a cena do filme “Bladerunner, o caçador de androides”, quando o mocinho filme está prestes a morrer e é salvo pelo vilão que, ao perceber que está morrendo, não vê sentido em eliminar o seu algoz.
Já vi esse filme várias vezes e essa é uma cena que guardo sempre na memória, exatamente por causa dessa reflexão que você fez.
Escrevi outro dia, no Twitter que “a rigor, não se deveria falar em pena de morte, e sim pena de antecipação dela”, afinal, todos morreremos.
Mas, há quem diga que não há antecipação. Cada um vai quando deveria ir mesmo. Será?

Marcos Mairton disse...

Complementando: O texto não menciona expressamente a cena que o ilustra. Apenas o título repete a frase do androide: – Hora de morrer…
Se você, autor, fez isso de propósito, parabéns! Grande sacada!