sexta-feira, 18 de maio de 2018

Sob a merencória luz da lua


SOB A MERENCÓRIA LUZ DA LUA

Clóvis Campêlo

 
Talvez não seja fácil escrever uma crônica todos os dias. E muito menos fazer um poema. Os poemas, aliás, sumiram-me faz tempo. As crônicas, os sucederam e não mais se querem ir. Sifu!. Não sou mais um poeta sem estilo, inamadurecido. Sou agora um cronista crônico e revoltado. Afinal, criar imagens com palavras não é lá tão fácil. Muito menos, fazer poesia com a luz. As crônicas podem me resolver a questão temporariamente, mas nunca com a intensidade poética e luminosa das preteridas.
Quem imaginaria que Martha não passava de uma cachorra, cantada com as notas e as harmonias de uma música de Friedrich Von Flottow. Uma valsa acelerada, talvez. E haja habilidade do compositor com as duas mãos. Quando ele quis, aliás, sempre soube ser excludente. Nunca foi, porém, o besouro maldito e mal-amado que o outro queria ser (e o era!).
Martha, aliás nunca teve nada a ver com isso. Apenas era uma cadela amada por um dos homens mais desejáveis do planeta. Às vezes, precisa-se de sorte até mesmo para ser uma cachorra. E Martha, a cachorra querida a teve. Não sei, porém, o fim ela levou.
Talvez tenha morrido ainda no século XX, sem glórias e reconhecimentos inúteis. A morte não só nos redime como também nos rompe definitivamente as amarras com esse mundo cruel, esse vale de lágrimas.
Nunca tive uma cachorra com o nome de Martha, embora durante um certo tempo a tenha querido. A minha cadela preferida, aliás, chamava-se Júlia. E muitas ocasiões, no meio da noite, durante o sono interrompido, a procurava com uma ansiedade inútil. Eu sempre a quis. Ela, porém, nunca me demonstrou mais do que uma afeição superficial e efêmera. Uma cachorra vadia e desinteressada. Não mereceu jamais o carinho que lhe dediquei. Como consolo, fiz-lhe uma canção que cantarolava nas noites mornas de verão, no Pina, quando a carência afetiva batia mais forte e incógnita.

Na verdade, Júlia fugira de casa em uma noite aparentemente calma e rotineira. No dia seguinte, o seu corpo foi encontrado na avenida principal do bairro. Fora atropelada pelo “bacurau”, o último ônibus da noite que sempre fazia a viagem final transportando os operários retardatários. Foi uma morte inglória. Senti deveras.
Naquela noite e nas noites que a seguiram, só me restou a nostálgica luz da lua cheia, hemorrágica luminosidade a ocultar os fatos verdadeiros.
Na primeira noite da semana seguinte, uma chuva torrencial impediu-me de sair de casa e passear à beira-mar como gostava de sempre o fazer. Ainda não havia me acostumado com a ausência de Júlia, mas sempre me restava a lua e a sua luz merencória pintando a aquarela daquele noturno praieiro.
O céu, porém, não se abriu. Abriu-se me apenas a estranha e leve sensação de estar vivo e poder olhar a chuva cair na areia do quintal de casa. Não conseguia escutar a música do mar, diante do barulho ensurdecedor da chuva. O ritmo dos pingos ao cair no chão me fizeram relembra toda uma vida vivida em função de ideias mal concebidas tomadas emprestadas. Nada aquilo até então havia sido originalmente concebido ou criado. Eu era apenas um fantoche nas mãos imaginárias da minha vida inventada.

 

Um comentário:

Eliane Triska disse...

Um cronista crônico e revoltado... rsrs ADOREI!!!!!!!!