sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

A minha insignificância


A MINHA INSIGNIFICÂNCIA

Clóvis Campêlo

Na casa do meu sogro, em Carolina, no sul do Maranhão, era assim: só quem dormia em cama era ele e a mulher, minha sogra. Foi assim, aliás, que constituíram uma família de nove filhos. Os filhos, estes, todos, dormiam em redes no quarto contíguo. Assim, quando fui admitido na família, inseri a minha rede na fileira do quarto filial. Era mais um que chegava, mais uma rede para contabilizar que a família voltava a crescer e começava a receber novos agregados.
De Carolina para o Recife, foi um pulo. Na minha casa, nunca faltou uma rede. Nelas, embalei os meus filhos e os netos. Com um pouco de sorte, talvez consiga até embalar os bisnetos. A rede passou a fazer parte do nosso ambiente doméstico. Um utensílio indispensável.
Procuro no Google, o novo pai dos burros, quem inventou a rede e confirmo que se trata de uma invenção ameríndia, feita originalmente com cipós e lianas. No Brasil colônia foi reinventada com algodão e enfeitada com franjas. Deixava, assim, de ser um utensílio doméstico indígena para ser um ornamento a mais nas casas dos nossos invasores e dominadores.
Durante muitos anos morei em um prédio no bairro do Cordeiro, no Recife, onde disputava com um vizinho para ver quem permanecia mais tempo na rede, à noite, nos terraços dos nossos apartamentos. Era uma disputa mais do que amigável, já que ele, um matuto de Jataúba, cidade situada no agreste do Estado, não dispensava horas de relaxamento e cochilos na rede.
Por essa época, apelidei a rede de “minha insignificância”. Sempre que precisava interromper alguma conversa longa ou desinteressante, usava sempre esse argumento: “já está na hora de me recolher à minha insignificância”! Funcionava a contento, as pessoas entendiam e até achavam graça.
Hoje, mesmo morando no décimo sexto andar de outro edifício, não dispenso a rede no terraço, onde costumo ver a lua cheia nascer por trás dos edifícios da Madalena. Mesmo assim, ainda insatisfeito por conta dos dias de chuva, que me privam do terraço panorâmico, instalei outro armador de rede na sala para as emergências.
Por nada nesse mundo, eu me separo da minha insignificância!

Recife, dezembro 2014


3 comentários:

Risomar Fassanaro disse...

Mais uma linda crônica!
Minha mãe dormiu em rede até antes de casar, tinha uma postura de "rainha".

Walter da Silva disse...

Alvissareiras insignificâncias tenho em meu terraço. Só que com cheiro de cadela, em vez de gente.
abraço,

Paulo Lisker disse...

Muito estimado Clóvis, Boa Tarde!
Li e muito gostei desse seu comentário sobre "A MINHA INSIGNIFICANCIA" que trata da sua rede.
Foi a primeira vez que li algo que dá o verdadeiro valor a um objeto que só tem valor no mercado onde a adquirimos depois de barganhar com o dono da tenda. Depois a colocamos no seu devido local, muitas vezes meio escondida entre outras coisas de maior realce na nossa casa.
Dizem que os colchões de hoje deram o "tiro de morte" nas nossas celebres redes do interior, porém só quem não dormiu numa dessas depois de um dia de cavalgada no interior do nordeste não sabe o verdadeiro valor do descanso numa rede matuta que ainda exala o cheirinho dos fios de carrapicho entrelaçados com os do algodão mocó e o chiado dos ganchos na paredes nuas sem reboco. A moderna pode trazer muita coisa boa mesmo para nós matutos, porém a rede para um verdadeiro dascanso continua sendo indestrutível e persiste por mais de séculos.
Dizem os entendidos que a rede nunca terá data sobre passada, ela é eterna!
Gostei.
Um abraço.