segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

A janela do meu quarto


O Pátio da Santa Cruz, no Recife

A JANELA DO MEU QUARTO

Clóvis Campêlo

Houve um tempo em que a janela do meu quarto dava para os telhados dos casarões do bairro da Boa Vista.
Nas noites quentes de verão, da janela do meu quarto, podia ver os gatos vadios peregrinando sobre as telhas em busca de sexo, ratos e outras bobagens mais.
Nos dias claros de verão, quando o céu iluminado do Recife intensificava o seu azul, da janela do meu quarto, podia ver as torres brancas da Igreja de São Gonçalo, realçadas, contrastando com o vermelho queimado dos telhados.
Nas manhã invernosas, da janela do meu quarto, via a cidade esfriar e se perder nas brumas da chuva fina e constante.
Nos Domingos de Ramos, da janela do meu quarto, podia ver os fiéis se encaminhando à igreja, logo cedo, pela manhã, com seus ramos de palmeiras, atendendo ao chamado dos sinos que convocavam para a primeira missa do dia e simbolizando a entrada de Cristo em Jerusalém, montado em seu burrico.
Nos sábados pagãos, da janela do meu quarto, podia ouvir o burburinho do Mercado da Boa Vista em festa, com seus bêbados e boêmios alegres convidando-nos aos prazeres inevitáveis do pecado.
Nos dias de carnaval, da janela do meu quarto, podia ouvir os clarins do frevo, com seus passistas famosos, e o baticum incessante dos maracatus no Pátio da Santa Cruz, com seus reis e rainhas negros e célebres.
Da janela do meu quarto, ainda nos dias alegres dos carnavais, escutava a algazarra das laursas e o som do bumba-meu-boi, cultuando a tradição e se negando a aceitar a modernidade que começava a invadir a cidade pequena e decente.
Da janela do meu quarto, vi o tempo passar, qual rio incessante e sinuoso, e desaguar no mar do futuro, deixando para trás lembranças, pessoas, amigos, fatos, parentes, pedaços da vida.

Recife, 2010

6 comentários:

Urariano Mota disse...

O poeta Clóvis Campelo manda esta bela crônica.

Risomar disse...

Que linda crônica! Que felicidade a de quem vive aí e tem este mundo todo visto pela janela do seu quarto.
Da minha janela o que vejo são as obras de canalização de um córrego que teve como preço a dizimação de várias árvores,
entre elas um pé de amora carregadinho de amoras, e outra que servia de moradia para um joão-de-barro...
E agora nem mesmo pássaros temos, pois já não têm onde morar...

Renato de Urá disse...

Belíssima crônica !
Da janela do meu quarto, no pequeno edifício, já demolido, de Ipanema,
eu ouvia todas as tardes um papagaio da vizinhança desfiar toda a
"Marangalha" do Caymmi.
Abraços grandes, uma boa semana !

Paulo Lisker disse...

Como sempre teus textos me levam de volta a estes lugares comuns de personagens, gatos nos telhados de telhas vermelhas e verdes de tão velhas do "tempo da onça" mas que ninguém nunca caçava e sim saia a sambar com elas e as empregadas nos blocos de rua e em especial do "Leão Coroado" do Beco da Mangueira.
Ai tempo bom e saudades.

Carlos Maia disse...

Clóvis, tomei a liberdade e publiquei na minha página no facebook: https://www.facebook.com/carlos.maia.92560 Espero que goste! A crônica ficou muito boa!!! PARABÉNS!!!

Clóvis Campêlo disse...

Eu é que te agradeço, Carlito. Abraços sinceros