Fotografia de Diego Nigro/JC
O LOUCO E O POETA
Clóvis Campêlo
A cidade do Recife amanheceu consternada nessa segunda-feira. De madrugada, um maluco destruiu partes da escultura do poeta Ascenso Ferreira, situada no Cais da Alfândega. Dizem que em vida o poeta gostava de por ali passear nos fins de tarde, admirando o por do sol por trás do Capibaribe. Em função disso, o local foi escolhido para acolher a sua imagem.
Em qualquer cidade do mundo, é duro ser estátua, amigos. Nos anos 60, o compositor Erasmo Carlos já afirmava isso em uma de suas músicas. No caso do compositor paulista, o que lhe afligia eram os pombos na cabeça e os brotos passando incólumes ao seu lado. No caso do poeta pernambucano, o perigo veio de um louco solto pelas ruas, um lúmpen perdido nas noites recifenses.
Mas afinal o que o teria levado a cometer tamanha sandice? No seu delírio quixotesco de louco, a imagem poética daquele homenzarrão às margens do rio deve ter lhe sugerido um monstro a ser derrotado, um moinho de vento imponente a desafiar-lhe a insanidade.
Bastou-lhe uma pedra, um paralelepípedo proparoxítono, para enfrentar e derrotar o perigo imaginário. E sempre haverá uma pedra no caminho, amigos, para desestabilizar a inércia da vida ou da noite. Alguns poucos golpes e o vilão solitário desfigurou o rosto bonachão e pacato do poeta. Depois, mirou e atingiu as suas mãos de poeta, repletas dos versos danados e revolucionários do modernismo brasileiro. Inerte em seu sono de pedra, só restou ao bardo aguardar em silêncio as luzes do dia com a resignação dos feridos de morte. Mesmo desfigurado, porém, manteve-se de pé. Afinal, feito de ferro e pedra deve ter no íntimo a certeza do renascimento.
Ao louco vencedor, além dos louros da vitória no combate desigual, coube a glória de atravessar solene a ponte Maurício de Nassau, sem pedágios ou bois voadores a lhe incomodar a insanidade noturna. Talvez visasse um outro poeta logo adiante, uma outra imagem imponente situada sobre a ponte a contemplar eternamente os ares poéticos do encontro dos rios.
Se era essa a sua intenção, porém, não logrou êxito. Logo adiante foi detido por uma viatura policial. A próxima vítima estava a salvo. O seu corpo diminuto não seria sacrificado pela loucura gratuita do dom quixote urbano. Encerrava-se ali mais uma tragicomédia pós-moderna. E, loucuras a parte, com certeza, entre mortos e feridos, todos terão o direito de escapar. A imagem do poeta dos Palmares será reconstituída e deverá caber às autoridades competentes a responsabilidade pela proteção e tratamento adequados a serem dispensados ao meliante tresloucado.
Afinal, de poeta e de louco todos nós temos um pouco.
Recife, 2014
2 comentários:
Que belo texto. Parabéns, apesar da triste notícia.
Texto da hora de Clóvis Campelo.
Um ato assim animal dá tanta raiva, que desperta um instinto homicida.
Olhem a foto do que foi reduzida a estátua do poeta.
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