quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Preferência nacional



PREFERÊNCIA NACIONAL

Clóvis Campêlo


Segundo Renato Boca-de-Caçapa, o filósofo do lumpen-proletariado, se existem duas coisas que mexem com o imaginário do brasileiro são a bunda e o futebol.
Diferentemente dos americanos, que preferem um peito suculento e exagerado, a bunda é tão querida por nós que até o circunspecto poeta Carlos Drummond de Andrade dedicou-lhe o poema rotundo abaixo.

Na Bahia, o filósofo e escritor Antônio Risério dedicou-lhe uma monografia repleta de citações científicas e levando em conta todas as regras da ABNT. Ou seja, coisa séria! E não poderia ser diferente, diante dessa magnífica região corpórea onde a nossa imaginação pagã vagueia sem lenço e sem documento. A bunda hipnotiza o brasileiro.

A BUNDA, QUE ENGRAÇADA

A bunda, que engraçada.
Está sempre sorrindo, nunca é trágica
Não lhe importa o que vai
pela frente do corpo. A bunda basta-se.
Existe algo mais? Talvez os seios.
Ora - murmura a bunda - esses garotos
ainda lhes falta muito que estudar.
A bunda são duas luas gêmeas
em rotundo meneio. Anda por si
na cadência mimosa, no milagre
de ser duas em uma, plenamente.
A bunda se diverte
por conta própria. E ama.
Na cama agita-se. Montanhas
avolumam-se, descem. Ondas batendo
numa praia infinita.
Lá vai sorrindo a bunda. Vai feliz
na carícia de ser e balançar.
Esferas harmoniosas sobre o caos.
A bunda é a bunda,
redunda.

 
Quanto ao futebol, ele representou o início da nossa redenção, enquanto povo moreno e terceiro-mundista. Segundo o escritor Nelson Rodrigues, foi o futebol que, nos distantes anos 50 e 60 do século passado, nas conquistas do bicampeonato mundial, na Suécia e no Chile, nos livrou da pecha de vira-latas .
O futebol, também, em que pese toda a conotação de mercadoria valiosa por ele adquirida hoje em dia, devolve-nos o sentimento de coletividade que, de certo modo, perdemos diante do individualismo desenfreado da vida moderna. Coisa boa é irmos aos estádios e nos identificarmos com a torcida do nosso time querido, abraçar quem nunca vimos, gritarmos gritos de guerra e cantarmos em uníssono os nossos hinos. Para mim, o futebol é a demonstração viva de que o homem é um ser coletivo, de que a individualidade é uma coisa forjada em nós pelo sistema. Bom é estar ali, no meio do povo, a cantar, a dançar, a sorrir, a vibrar, independentemente de tudo. Bom, naquele momento, é sermos aquela família.

Sobre o futebol também manifestou-se o poeta Drummond, e seguindo a lógica rodrigueana de que a seleção brasileira era a pátria de chuteiras, dedicou ao nosso escrete que disputaria a Copa do Mundo no México, em 1970, o poema abaixo, pouco citado e pouco lembrado. Fica claro que a paixão de Drummond pelo futebol superava até o momento político delicado que se vivia naquela época, colocando-o ao lado dos 90 milhões que unidos torciam pelo sucesso da seleção de Zagallo.

MEU CORAÇÃO NO MÉXICO

Meu coração não joga nem conhece
as artes de jogar. Bate distante
da bola nos estádios, que alucina
o torcedor, escravo de seu clube.
Vive comigo, e em mim, os meus cuidados.
Hoje, porém, acordo, e eis que me estranho:
que é de meu coração? Está no México,
voou certeiro, sem me consultar,
instalou-se, discreto, num cantinho
qualquer, entre bandeiras tremulantes,
microfones, charangas, ovações,
e de repente, sem que eu mesmo saiba
como ficou assim, ele se exalta
e vira coração de torcedor,
torce, retorce e se distorce todo,
grita: Brasil! Com fúria e com amor.

 -
Recife, 2012

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