quinta-feira, 20 de outubro de 2016

De volta para o passado


DE VOLTA PARA O PASSADO

Clóvis Campêlo

Não tenho pretensões de ser nenhum novo Dom Casmurro. A minha mulher não se chama Capitolina. E nem, ao menos, tenho algum amigo chamado Esequiel. Nem mesmo ando mais de trem. Na cidade moderna em que vivo, esse foi substituído pelo metrô. Mas, nem de metrô eu ando. Tenho meu próprio automóvel, conseguido pela ascensão da classe média nos últimos governos populistas. Vivo, portanto, a solidão coletiva e diária de me locomover escutando alguma rádio que toque música popular brasileira ou o bom rock'n'roll. Poemas, só escuto os de Carlos Drummond de Andrade, gravados em um compact disc que me foi presenteado por um amigo de longas datas. Meto-o no equipamento de som do carro, e escuto sempre o poeta mineiro com sua voz aparentemente frágil e cansada. Aliás, cansadíssima!
Mas, assim como o famoso personagem machadiano, surgiu-me, na etapa final da vida, a necessidade de reconstituir, ao menos fisicamente, um cenário que me fora adequado no início. O desenho, fazia muito tempo, estava gravado na minha cabeça teimosa. Aliás, teimosíssima (como podem reparar, também curto os superlativos!).
Do portão que vinha da rua até o pequeno terraço de entrada, havia uma curta calçada. Do terraço, alcançava-se a porta da sala, em duas abas e ao lado de uma janela, também com duas abas, que se abriam para o terraço. Os quartos, eram em número de trás, do mesmo lado da casa. Os dois últimos, tinham as suas janelas voltadas para o oitão lateral. Era lá que o sol nascia. O primeiro, porém, abria a janela para o poente e era estucado, o que o tornava insuportavelmente quente à noite quando as portas da casa se fechavam para o sono dos justos e dos injustos também. Nesse, ninguém queria se acomodar. Era para lá que fugíamos, eu e meu irmão, nas noites quentes de verão para desfrutar do corpo de Creusa, a doméstica que nos iniciara sexualmente. Meus pais nunca desconfiaram de nada. Tudo confabulava ao nosso favor naqueles tempos ideais.
Entre a sala e a cozinha, havia uma pequena passagem que também dava acesso ao banheiro única da casa. Por seu lado a cozinha abria-se em um terraço interno, mandado construir depois por meu pai, onde ficava a lavanderia e os tonéis com a água que chegava à noite nas torneiras mais baixas. Ainda não haviam construído a Barragem de Tapacurá e os banhos de chuveiro eram um sonho quase inalcançável.
O quintal era um caso especial. Na parte da frente, havia um jardim com canteiros em forma de losangos, onde plantávamos rosas de todas as cores. Na parte lateral estavam as fruteiras, onde canários, curiós e papa-capins se abrigavam e proliferavam incansáveis. Não havia verão que desse conta daquela capacidade de propagação. Era a preservação das espécies.
Na parte traseira do quintal, meu pai plantara bananeiras de várias espécies e alguns pés de mamão caiano. Ali, era o lugar dos sanhaçus, guriatãs e concrizes, passarinhos de molhado, como se dizia, comedores de frutas e de cantos maviosos.
Recompondo a casa antiga do Pina, termino assim essa crônica. Se fui descritivo, quando me queria irônico e memorialista, talvez até mesmo introspectivo, culpa a minha incapacidade literária de copiar o grande mestre, mesmo que em um pequeno e insignificante texto.
Talvez, como ele, termine me convencendo que seria bem melhor tentar escrever sobre as histórias dos antigos subúrbios.

Recife, outubro 2016

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