DO ROMANCE DE CAVALARIA AO ROMANCE DO SÉCULO XVII
Clóvis Campêlo
Da prosificação e das metamorfoses sofridas pelas canções de gesta, surge o romance de cavalaria. E ainda isento de subjetivismos, o romance de cavalaria circula entre a realeza e a fidalguia espelhando uma prática de vida cortês e guerreira.
Contrapondo-se a ele, ainda com base na classificação feita por Vitor Manuel de Aguiar e Silva, na sua Teoria da Literatura (São Paulo, Martins Fontes, 1975, p.252), temos o romance sentimental, que apresenta um cunho erótico, quando ambientado entre a burguesia, e um cunho emotivo, quando em ambiente aristocrático. Embora as diferenças formais não apresentem aqui aspectos significativos é em relação ao conteúdo, mais uma vez, que elas também se mostram. O romance de cavalaria, estruturando-se em torno do amor sublimizado e da aventura, valoriza as peripécias externas motivadas pelo amor e revela, sempre, um final feliz para os amores narrados, o que serve para restabelecer a velha ordem alterada por conta desses acontecimentos. O herói das novelas de cavalaria ainda apresenta o cacoete épico de lutar contra as transformações da realidade social que o cerca e que favorece a manutenção de uma determinada ordem.
Por seu lado, o romance sentimental caracteriza-se por uma análise meticulosa do sentimento amoroso, deslocando espacialmente o eixo da narrativa e dando início a um processo de subjetivização que se desdobraria até os dias atuais.
O cunho erótico do romance sentimental burguês, contrapondo-se ao caráter sentimental do romance aristocrático, também pode ser interpretado como mais uma demosntração do caráter subversivo desse gênero. Os finais trágicos por eles apresentados, no entanto, mostram-nos, ainda, a predominância da estrutura mantenedora da velha ordem.
Com o romance pastoril, surgido no período renascentista, temos um primeiro "olhar-para-trás" romanesco. Mesclando a prosa com o verso, caracteriza-se por ser uma forma narrativa marcadamente culta e que contrapõe a hipocrisia da vida social da época a um mundo idealizado e estereotipado. No entanto, se o romance pastoril já delineia uma postura mais crítica em relação ao mundo em que se situa, ao mesmo tempo, assume uma atitude fugidia de afastamento dessa mesma realidade. Da sua época, o romance pastoril renega o tempo e o espaço, deixando visível em sua tendência passadista e elitista o impasse cultural daquele momento. Ressuscita, desse modo, ao tentar aproximar-se da cultura clássica, os mitos do "locus amoenus" e do "fugere urbem". Observamos, ainda, que ao idealizar o mundo, embora sob a ótica de um saudosismo aristocrático, o romance pastoril já outorga aos seus autores poderes inusitados em relação a esse mesmo mundo. Se ao criador épico cabia a tarefa de descrever as peripécias no mundo de um herói restaurador da ordem, no romance pastoril, embora sob uma conotação um tanto quanto esquizóide e já manifestada em relação às fases anteriores do romance, cabe ao autor essa condição de restaurador cósmico.
O romance picaresco surge na espanha do século XVII e termina por influenciar toda a literatura européia daquela época, encaminhando a literatura para uma visão realista da sociedade seiscentista. O espírito subversivo do romance picaresco, no entanto, transcende essa visão realista e substitui definitivamente o herói épico por um anti-herói (o pícaro). Abandona de vez os temas fidalgos para centar a sua atenção em "um indivíduo que tem consciência da legitimidade da sua oposição ao mundo e que ousa considerar, em desafio aos cânones dominantes, a sua vida mesquinha e reles como digna de ser narrada" (Vitor Manuel de Aguiar e Silva, na obra supra citada, p. 255).
Segundo Mario Gonzáles ( em O Romance Picaresco, São Paulo, Editora Ática, 1988, p. 5), no romance picaresco "ao contrário dos costumeiros relatos das aventuras de fantásticos cavaleiros andantes ou inverossímeis pastores polidamente apaixonados, os próprios protagonistas - na maioria dos casos - contam suas vidas de marginalizados em luta pela sobrevivência". Mais uma vez desloca-se o eixo da narrativa e o confronto entre o indivíduo e o mundo que o cerca, exposto no romance picaresco, será estendido até o romance moderno.
É no século XVII, ainda, sob a influência do Barroco, que o romance conhecerá uma grande proliferação e assumirá as características, tanto formais quanto de conteúdo, que o farão caminhar para o romance moderno. Perdendo o seu caráter exuberante e inverossímel (hoje, de certo modo, sendo reutilizado pelo romance pós-moderno e pelo realismo fantástico) para querer mostrar o mundo que o rodeia de maneira real, embora sob a ótica de quem narra (verossimilhança e subjetivismo). A partir daí, o romance passará a refugar a "narrativa puramente imaginosa do barroco" (Vitor Manuel de Aguiar e Silva, na obra citada, p. 259), afastando-se cada vez mais da utilização da estética clássica e, encaminhando-se para um novo público, ascenderá na escala de valores dos gêneros literários.
Recife, 1993
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