quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

A identificação do romance com as características das artes modernas


José Guilherme Merquior

A IDENTIFICAÇÃO DO ROMANCE COM AS CARCTERÍSTICAS DAS ARTES MODERNAS

Clóvis Campêlo

Quando o Romantismo surge na literatura européia, refletindo a consolidação e o desdobramento de uma nova ordem social, já encontra o romance solidificado enquanto gênero literário. É a partir do Romantismo, no entanto, que o romance se afirmará definitivamente como uma grande forma literária e com maturidade suficiente para exprimir e questionar os aspectos vários do homem e do mundo.
Porém, se é no Romantismo que o gênero romanesco atinge a sua maturidade e firma-se como uma espécie literária de primeira grandeza, será dentro do Modernismo que o romance, como de resto toda a arte moderna, apresentará os elementos definidores da sua contemporaneidade.
José Guilherme Merquior, no livro "Formalismo e tradição moderna: o problema da arte na crise da cultura", estabelece estes elementos ao confrontar as realizações artísticas do século XIX com as características da arte moderna, conforme verificamos abaixo:

"Neste ponto é que pedimos auxílio à história da cultura, pois é mais fácil captar a singularidade do estilo moderno por meio de uma comparação global da arte moderna (letras, drama, plástica e música) com as grandes realizações estéticas do século XIX do que por meio de um confronto estritamente interliterário. Em si, essa circunstância nada tem de admirável, já que o século XIX abrange precisamente a época inicial da cultura contemporânea, situada entre a Primeira Revolução Industrial e o arco que compreende a "Segunda Revolução Industrial" (G. Friedman) e a Grande Guerra de 1914-18; como é de esperar, essa cesura histórica no interior da civilização urbano industrial (a qual por sua vez, não é senão o apogeu da civilização do Ocidente moderno, configurada no século XVIII) sublinha as diferenças epocais de estilo ao nível de todas as artes, em bloco, relegando a um plano secundário a evolução particular de cada uma delas."

Dessa maneira, seguindo o esquema comparativo estabelecido por Merquior entre o Romantismo e as artes modernas, verificaremos que um dos aspectos que caracteriza a literatura moderna, em comparação com a literatura romântica, é a mudança de uma concepção mágica de arte para uma concepção lúdica. A arte romântica, que se sentia comprometida com a salvação e com o resgate espiritual do homem, cede lugar à atitude lúdica dos modernos. Segundo Merquior, na obra citada, "os líricos românticos encaravam o verbo poético como um organon cognitivo único, garante do mergulho no Todo, para revigoramento do ego e regeneração da alma". Investia-se, portanto, a obra ficcional de poderes elevados que visavam a busca da verdade e da felicidade humana. Os modernos, por seu lado, preocuparam-se em desmistificar as pretensões românticas, convertendo a arte-magia em arte-jogo, tanto no que se refere à forma quanto no que se refere ao conteúdo.
Em referência ao conteúdo, o estilo moderno caracteriza-se por uma postura parodística, em relação aos sentimentos e às situações, ultrapassando a tensão entre o objeto e a verbalização desse objeto (perspectivismo), marca registrada do lirismo realista pós-romântico (Baudelaire) e precursor da poética atual, para decretar uma variação no próprio tom dogmático dessa verbalização. Desse modo, a arte moderna tende a brincar com os seus temas mesmo quando os leva à sério. A adoção do grotesco em substituição à tragicidade romântica é um outro aspecto da estética moderna que termina por resultar no desaparecimento dos heróis (protótipos míticos assumidos coletivamente) para dar lugar ao surgimento de anti-heróis (indivíduos que não escapam dos encargos da vida moderna).
No que concerne à forma, a arte moderna é decididamente experimentalista, chegando ao experimentalismo pleno e superando o alto nível de consciência artesanal desenvolvido pelos românticos. Se entre os românticos o conhecimento estético sobrepunha-se ao saber racional, como forma de libertação do imaginário reprimido pelas normas da sociedade burguesa e industrial, muito embora aí se possa constatar uma atitude nostálgica de procurar no passado o éden perdido, a arte moderna desvencilha-se da rigidez formal e parte em busca de linguagens experimentais. Ao mesmo tempo, ao centrar no processo produtivo a ênfase da obra, renegando o caráter dogmático do conteúdo romântico, a arte moderna provoca uma modificação correlata na atitude do destinatário, levando-o a participar dos ritos simbólicos propostos pelo artista e tirando-o da condição de receptor passivo.
Consideremos, também, ainda dentro do esquema comparativo que se propõe a mostrar a evolução da arte romântica até a estética moderna, que se na nostalgia passadista da primeira, em busca do resgate de valores éticos e religiosos outrora importantes, já se manifestava um antagonismo em relação aos padrões dominantes na cultura ocidental burguesa, a arte moderna transformará essa oposição cultural em ruptura. Tal transformação se dará, no entanto, sem que ocorra o retrocesso passadista do Romantismo. Os modernos se voltarão para outras culturas, estabelecendo um movimento que Merquior identificará como uma desocidentalização do éden mítico.


Recife, 1993

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