quarta-feira, 8 de julho de 2015

As águas do Capibaribe

Fotografia de Clóvis Campêlo / 2015

AS ÁGUAS DO CAPIBARIBE

Clóvis Campêlo

Dizem os historiadores e geólogos que as águas trouxeram a areia e com ela escreveram o seu próprio caminho. A isso se chama de aluvião. Estamos numa planície aluvional. Onde antes existia uma baía. A baía de Paranabuco? Um trabalho longo, paciente e extenuante da Natureza, complementado, séculos depois, pelas mãos do bicho homem. Assim, essa relação íntima, próxima, construtiva, entre nós, a cidade e o rio. Um consórcio gigantesco pela própria concepção.
Na língua tupi dos índios, capibaribe significa o rio das capivaras. Há quem diga que até bem pouco tempo atrás, elas ainda invadiam os quintais dos bairros de Casa Forte e da Várzea do Capibaribe. Outros afirmam, que de manhã cedinho, na Rua da Aurora, era comum se ver os botos dando saltos amostrados e belos. Infelizmente, não cheguei a alcançar isso.
Mas, nos anos 60, lembro bem da violência do vinhoto, resíduo pastoso e mal-cheiroso que sobrava após a fermentação do caldo da cana para a obtenção do etanol. As usinas eram impiedosas. Toneladas de peixes foram mortos e a vegetação que havia no mangue, dizimada. Nessa época, quando o vinhoto era derramado sem o menor escrúpulo ou consciência ecológica, era grande a fedentina no centro do Recife. O Capibaribe quase morreu.
Porém, se até o Tâmisa foi libertado da podridão da sua lama, por que não nós? Um prefeito mais atento replantou a vegetação do mangue e o centro da cidade se tornou mais verde. As usinas foram proibidas da agressão do vinhoto e os peixes e crustáceos ribeirinhos foram reabilitados. E, apesar do lixo e dos esgotos que ainda sujam as suas águas, o Capibaribe tornou-se mais limpo e mais livre. Hoje, ainda é comum se ver pescadores nas pontes, de linha de pescar ou jereré nas mãos, em busca do alimento que o rio nunca nos negou. Ou então, as catadoras de marisco aproveitando a baixa da maré para catar sururu e marisco nas areis do mangue que se confunde com o rio. É antiga essa relação do homem do Recife com o seu rio. Vem dos anos do século XVI, quando os primeiros pescadores desceram as ladeiras de Olinda e se instalaram no areal incipiente para ficar mais próximos do mar e dos peixes marinhos.
Ali nascia a cidade, que cresceu de fora para dentro, extrapolando as areias do mangue, chegando aos engenhos que existiram na periferia do Recife e que terminaram por determinar os nomes de vários dos nossos bairros.
O Rio Capibaribe nasce na cidade de Poção, na Serra da Jacarará, a 240 quilômetros do Recife. Antes de desaguar no Oceano Atlântico, banha 42 municípios pernambucanos. Ao entrar na região metropolitana, corta o Recife ao meio, como uma faca corta uma fruta. A sua visão inspira poetas e torna o Recife uma cidade belíssima, principalmente quando vista de cima. No centro da cidade, encontra-se com o Rio Beberibe, que vem de Olinda, e juntos desaguam no mar.
Não há como interpretar o Recife e o seu povo sem o entendimento do rio. Ele nos traduz. Decifra os nossos mais profundos anseios e nos constrói um cenário ímpar e de extrema plasticidade. Sem ele, não existiríamos.

Recife, julho 2015

- Publicado no livro Crônicas Recifenses, Recife, Clube de Autores, 2018

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