UMA QUESTÃO DE CONSCIÊNCIA
Clóvis Campêlo
Olhou para mim e falou sem constrangimento: “Criei os meus filhos com esse dinheiro e agora estou ajudando a criar os meus netos. Sou feliz assim. Por isso, todos os dias venho trabalhar e dar a minha contribuição à repartição em que trabalho há mais de trinta anos. Sou funcionário público e me sinto orgulhoso em servir ao povo do meu país. Não me interessam os que não pensam assim, os que roubam e se locupletam com o dinheiro público. Não tenho nada a ver com isso e nem quero ter. É uma questão de consciência íntima. Cada um só dá o que pode ou sabe dar”.
Até hoje eu não sei se aquela falação foi um desabafo ou um momento definitivo de encontro dele consigo mesmo. Também sei porque foi a mim dirigida. Nem mesmo o conhecia, embora tenha com ele simpatizado desde o começo. Era um homem simples, como todos os homens de bem, e parecia ser feliz e estar em paz consigo mesmo.
Aquela atitude inusitada levou-me a refletir sobre o papel de cada um de nós neste mundo de Deus e do diabo, sobre a responsabilidade dos nosso atos e do exemplo a dar aos que nos rodeiam e amam.
Levou-me a refletir até mesmo sobre o direito de cada um equivocar-se com as ideias do mundo. Sim, porque penso que há os que erram repletos de má intenção e calculismo, e há os que erram por alguma concepção equivocada do seu papel na vida ou das ideias elaboradas.
Talvez tenha sido essa sinceridade exagerada, em um mundo onde quase todos dissimulam e tentam vender uma imagem nem sempre verdadeira de si mesmo, que me fez escrever essas mal traçadas linhas. Em um mundo repleto de espertezas, talvez essa seja realmente uma esperteza maior. Nem mesmo consigo imaginar, porém, como seria o mundo se todos pensassem e agissem assim.
Como a maturidade sempre nos traz a certeza da inutilidade das elucubrações impossíveis e inviáveis, não alimentei por muito tempo a ideia da perfeição, mas permiti-me imaginar as relações humanas e pessoais sem as veleidades existentes e sem a necessidade dos subterfúgios enganadores.
Durante alguns dias, aquele homem e a sua falação não me saíram da cabeça. Depois, fui voltando novamente as minhas atenções para os fatos imediatos da vida e aquela imagem foi se dissolvendo na minha mente, até se transformar em uma lembrança longínqua como um sonho ou uma miragem provocada pelo sol quente de um dia de verão nordestino.
Por fim, terminei por me voltar definitivamente à luta árdua pela sobrevivência, chegando até mesmo a admitir, em determinados momentos, a utilização de algumas estratégias desabonadoras em nome das vantagens imediatas que se ofereciam.
Verdadeiro ou não, aquele homem e a sua falação, foram gradativamente se perdendo na névoa do tempo e do passado.
Recife, 2014
Um comentário:
Belo texto amigo Clóvis, parabéns.
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