sexta-feira, 5 de agosto de 2016

O poeta e o macarrão




Fotografias de Clóvis Campêlo / agosto 2016

O POETA E O MACARRÃO

Clóvis Campêlo

A Praça da Independência, no bairro do Santo Antônio, no centro histórico do Recife, é uma das praças mais antigas da cidade. Segundo consta, durante o domínio holandês, aparecia nos mapas da época o local denominado Terreiro dos Coqueiros. Depois, mudou de denominação por várias vezes, sendo chamada de Praça Grande, Praça do Comércio, Praça da Ribeira e Praça da Polé. Em 1816, após uma reforma, mudou de denominação para Praça da União. Finalmente, em 1833, recebeu o nome atual de Praça da Independência. Porém, por abrigar durante muitos anos o prédio do jornal Diario de Pernambuco, o jornal mais antigo da América Latina ainda em circulação, e seguindo o gosto popular sempre foi chamada de Pracinha do Diario. 
É lá, entre tantos outros bustos e esculturas, que se encontra a estátua do poeta pernambucano Carlos Pena Filho. Sentado numa mesa, de frente para a Igreja Matriz  de Santo Antônio, e muito próximo ao local onde funcionou o Bar Savoy, reduto frequentado pelo poeta e pelos boêmios da sua geração.
Hoje, já não existe mais o Savoy e o prédio do Diario encontra-se abandonado e decadente, como de resto toda aquela área, abandonada pelo poder público e pelo poder econômico.
Apodrece o centro do Recife e quase não há mais vestígios da suntuosidade de décadas atrás, quando ainda éramos uma cidade previsível e cuidadosa com as suas relíquias culturais e históricas. A praça hoje, na sua maioria, é frequentada por prostitutas decadentes, pelo comercio informal e pelo lúmpen ocioso,  além de eventuais larápios e descuidistas. Afinal, o que teria esse povo a ver com um poeta falecido nos anos 60 e totalmente dele desconhecido? Como respeitar essa imagem que não lhes comunicada absolutamente nada?
Assim, como aconteceu com outras escultura do Circuito da Poesia no Recife, a escultura do poeta Carlos Pena Filho já teve um dos braços arrancados e o nariz fraturado. Afinal, ocupa um lugar que hoje já não lhe diz mais respeito. Invadido pelo povo periférico e pelos excluídos, em nada com eles se identifica.
Segundo os estudiosos do poeta, a poética de Carlos Pena Filho, é carregada de oralidade e musicalidade, possuindo forte apelo pictórico. Visual e plástico, o poeta “pinta” o poema com palavras. Dono de um lirismo envolvente, é um poeta de imagens plásticas onde se destaca a cor, o movimento e a luz. Escreveu vários poemas tendo nos títulos a palavra retrato e cerca de uma centena contendo os nomes das cores ou referências a elas. Morreu ainda muito jovem, aos 31 anos, envolvido em um acidente de trânsito, quando o trânsito no Recife ainda era domesticado e possível.
A agressividade contra a escultura do poeta, demonstrada pelos transeuntes frequentadores da Pracinha do Diario, inocentes mas não tão desprovidos de periculosidade, talvez seja explicada pelos sociólogos de plantão. O poeta, imortalizado em pedra, continua lá insone, apático e inerte, a mercê do vandalismo gratuito.
Mas nem sempre a interferência é destrutiva, embora possa continuar sendo desrespeitosa. Essa semana que começa a se findar, ornamentaram a cabeça do poeta com uma porção de macarrão cozido com colorau ou molho de tomate (não sei se o populacho curte tamanho refinamento...).
Para um poeta que sugeria imagens com as suas palavras, ter a sua imagem ornamentada com os carboidratos do macarrão, nos inspirou a escrever a presente crônica, além de fazer o devido registro fotográfico como prova cabal do "crime' cometido e protegido pelo anonimato das ruas.
Ao vencedor, as batatas! Ao poeta pernambucano, esquecido e com a escultura abandonada à própria sorte, macarrão ao molho de tomates.

Recife, agosto 2016

2 comentários:

Rômulo Rodrigues disse...

Muito boa a crônica, seria bom que você tivesse um espaço nos nossos jornais para que seus escritos e fotos fossem divulgados, pois, como sempre digo, são com sentimentos, críticas e reflete muitas verdades que devem ser trazidas para o povo, porque também é cultura. Quando escrever um livro lembre-se de me vender e continue divulgando na internet.

Violante Pimentel disse...

Parabéns pelo excelente texto, prezado escritor e poeta Clóvis Campêlo. É lamentável e revoltante o escárnio praticado contra a escultura do grande poeta pernambucano Carlos Pena Filho. A vil atitude de cobrir a cabeça do poeta com macarrão só pode ter partido de alguém sem noção do que aquele "bloco de cimento" representa. O poder público municipal deveria zelar por essa importante praça,, evitando que coisas como essa continuem acontecendo.
O poeta Manuel Bandeira ao se referir a Carlos Pena Filho, o Poeta do Azul, considerava impossível que as presentes e as futuras gerações viessem a esquecer "o poeta encantador, tão cedo e tão tragicamente desaparecido!" .
O poeta Carlos Pena Filho, nascido na mesma terra de Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto, conseguiu inserir-se no rol dos grandes poetas pernambucanos, apesar de ter tido sua produção interrompida, aos 31 anos. Sua poesia, criativa e sensível, é repleta de musicalidade e tem forte apelo visual. Assim nos mostra o seu belíssimo poema Chopp, que abrilhantava uma das paredes do tradicional Bar Savoy, Um dos seus últimos proprietários, hoje com noventa anos, o português Amandio Fernandes, residente em Recife, ainda recorda:CHOPP
Carlos Pena Filho

Na avenida Guararapes,
o Recife vai marchando.
O bairro de Santo Antonio,
tanto se foi transformando
que, agora, às cinco da tarde,
mais se assemelha a um festim,
nas mesas do Bar Savoy,
o refrão tem sido assim:
São trinta copos de chopp,
são trinta homens sentados,
trezentos desejos presos,
trinta mil sonhos frustrados.

Ah, mas se a gente pudesse
fazer o que tem vontade:
espiar o banho de uma,
a outra amar pela metade
e daquela que é mais linda
quebrar a rija vaidade.

Mas como a gente não pode
fazer o que tem vontade,
o jeito é mudar a vida
num diabólico festim.

Por isso no Bar Savoy,
o refrão é sempre assim:
São trinta copos de chopp,
são trinta homens sentados,
trezentos desejos presos,
trinta mil sonhos frustrados.