sábado, 19 de outubro de 2013

Pescadores e operários


PESCADORES E OPERÁRIOS

Clóvis Campêlo

Quando eu era menino lá no Pina, queria que o futuro chegasse logo e quebrasse os grilhões da infância que me forjava. A meninice tinhas suas limitações, embora também tivesse as suas vantagens, algumas das quais eu só iria perceber bem depois quando a nostalgia da vida adulta me atingisse.
Portanto, não me eram suficientes os quintais repletos de fruteiras onde disputávamos os frutos com os passarinhos. Muito menos a praia imensa onde pescávamos e jogávamos futebol. Nem o areal do Aeroclube, onde apanhávamos capim barba-de-bode para a construção de viveiros e gaiolas. Com certeza, o futuro me faria ultrapassar essas fronteiras e limites.
Naquela época, o tempo parecia caminhar lentamente. Era cansativa a rotina criativa da natureza. Queria ver o mundo dos homens, mesmo que fosse construído de concreto e maldades.
Acreditava que tudo ali era eterno e para sempre. Não sabia ainda que o para sempre sempre acaba. Estava acostumado a ver os pescadores saírem de manhã cedo para a labuta no mar. Moravam junto da maré, ao lado dos operários em construção, que também madrugavam. A diferença era que os primeiros iam trabalham de calção e camiseta, acompanhados por uma garrafa de cachaça. Os operários em construção não tinham esse direito. Calçavam velhas botinas pesadas e roupas pardas e padronizadas. Precisavam de transporte coletivo para chegar ao trabalho, enquanto os pescadores caminhavam decididos sobre a areia da praia. Muitas eram as histórias de morte entre eles, como a de seu Joca, que despencara do décimo andar do edifício que ajudava a construir no Recife Antigo, que naquela época chamávamos de Rio Branco, numa referência a estátua do Barão que até hoje ilustra a praça do Marco Zero. Ou as histórias de coragem de pescadores enfrentando tubarões e percorrendo sem rumo durante dias as águas nem sempre tranquilas do mar do Pina. Era um povo sofrido mas acostumado ao trabalho duro e pesado. Davam vazão à alegria quase sempre contida nas gafieiras do bairro, nas troças carnavalescas ou mesmo nos balcões das barracas que vendiam cachaça e conhaques de alcatrão. Vida simples e que se repetia nos filhos e netos, a maioria condenada ao mesmo destino. Parecia que a vida os marcara de forma definitiva.
Mas, mesmo naquele reduto espacial, onde o tempo caminhava em câmera lenta, as mudanças iam ocorrendo. Primeiro foram abrindo novas ruas e avenidas. Os manguezais foram sendo aterrados e dando lugar a novas construções para as classes sociais ascendentes. O povo foi sendo empurrado para longe e junto com ele também se foram as suas crenças e manifestações culturais. Adeus ao terreiros de candomblé, aos pastoris, aos bumba-meu-boi e caboclinhos, aos maracatus e fandangos. Junto com as novas classes sociais ascendentes, a televisão despontava na esquina. Era o futuro que eu tanto esperava.
Hoje, sinto falta daquilo tudo.


Recife, 2013

Um comentário:

Verônica Aroucha disse...

Eu também, como sinto falta de tudo aquilo. Apenas muda de endereço: Rio Doce e eu indo pescar com meu pai, nas pedras, no dique. Um dia, a maré encheu e ele nem notava, concentrado na sua pescaria e eu, uma menina, brincando na piscina natural, confiante de que nada aconteceria de mal.Tudo terminou bem!