quarta-feira, 7 de março de 2012

Na feira com Proust


NA FEIRA COM PROUST

Clóvis Campêlo

Não existe nada mais nordestino do que o verde da cana-de-açúcar ilustrando e adoçando os campos da zona da mata pernambucana. Essa visão sempre me invadiu as retinas desde a mais tenra idade. Como já disse o poeta, parafraseando os quatro cavaleiros do após calipso, “sugar fields forever”!
A monocultura da cana, aliás, alimentou toda uma cultura literária baseada na sua organização produtiva, social e econômica. Somos o povo do açúcar, com tudo de bom e de ruim que isso possa ter nos trazido. Da casa grande à senzala, passando pela mansão de Apipucos e pelas delícias do famosíssimo licor de pitanga. Saravá!
Lembro com carinho do meu avô paterno, seu Zeca, de manhã bem cedo, comendo o seu ovo frito com açúcar. Lembro também da minha mãe, dona Teresa, que gostava de comer carne guizada desfiada com açúcar. Lembro dos bolos de rolo das tias, do bolo formigado de dona Carmelita, a minha avó materna. Lembro até do falecido senador e governador biônico de Pernambuco Nilo Coelho, no qual nunca votei, gordo e bonachão, já diabético, no fim da vida, desfiando as orientações médicas e se deliciando com o sorvete de manga da Fri-sabor, sorveteria quase cinquentenária e tradicional do Recife. Enfim, cresci desejando e comendo açúcar como se isso fosse a coisa mais natural do mundo. Equivocadamente, ou não, a felicidade sempre me pareceu branca e doce como o açúcar.
Para mim, portanto, tornou-se uma tradição, sempre que possível, nas manhãs alegres e iluminadas dos sábados, ir à feira do Cordeiro, bairro situado na zona oeste do Recife, onde moro há mais de vinte anos, e tomar um caldo de cana com limão e bolo bacia. Verdadeiro maná dos céus. Ir ao Mercado de São José e não tomar um caldo de cana com bolo bacia? Nem pensar! Visitar a Feira de Caruaru e não degustar a delícia divina? Nunca!
Mas, o que teria o tão distante Marcel Proust a ver com tudo isso?
Nem eu mesmo saberia responder, caros amigos, se não me tivesse chegado às mãos, através do poeta José Rodrigues Correia Filho, uma edição antiga e bem editada da infelicidade proustiana contada no livro “Em busca do tempo perdido”.
As famosas “madeleines”, bolo pequeno e tradicional da região de Lorraine, no nordeste da França, apreciadas com devoção pelo pequeno e angustiado personagem proustiano, nada mais são do que os apetitosos bolinhos bacia que devoro com caldo de cana, nas feiras do Recife, com satisfação, nos dias iluminados de sábado.
Nesses dias, Proust sempre esteve comigo e nem eu mesmo sabia.
Saravá!


Recife, 2010

- Publicado no livro Crônicas Recifenses, Recife, Clube de Autores, 2018

5 comentários:

Passiflora disse...

Amigo Clóvis,
Lindo depoimento.
Vi que temos muito em comum. Não conheço esse doutor Prousti, mas tuas lembranças são também minhas e parece que elas fazem funcionar o efeito de Pavlov.
Basta lembrar a um nordestino da zona da mata o caldo de cana e o bolinho de bacia ou mesmo um pão doce e pronto. Estejas morando num iglu no pólo norte ou como eu plantando mamão e banana em Israel, para que as lembranças façam voltar o aroma que exalam as varas maduras dos canaviais, prontos para o corte.
Um abraço.
Paulo.

Urariano Mota disse...

Muito boa crônica, Clóvis.
Mas a madeleine franecsa é muito, muito mais gordurosa que nosso bom e saudável bolo de bacia.
Pra você ter ideia, a quantidade de manteiga deles é maior que a de trigo, e mais ovos e quantidade de açúcar igual ou maior que de farinha.
Mas em matéria de Proust, você fez muito bem com a lembrança do nosso paladar.

Abraço

Clóvis Campêlo disse...

Urariano, como não poderia deixar de ser, o seu comentário foi para o blog.
Confesso-lhe que não conheço intimamente a madeleine francesa.
Talvez o nosso bolinho bacia seja uma adaptação terceiro mundista mais pobre.
Mas bem mais gostosa.
Abraços

Urariano Mota disse...

Valeu, Clóvis. Fez bem.
Eu também nunca provei da Madeleine, mas fui olhar as receitas no google, e vi que a madeleine é gordura até umas horas.
A sua crônica é um bolo de bacia, dos bons.
E olhe, a saudade é tão grande, que até bolo de goma, de que eu não gostava, de vez em quando me pego provando.

Luzilá Gonçalves Ferreira disse...

Mil perdões: a madeleine nada tem a ver com o bolinho de bacia, nem forma nem gosto. O de bacia é melhor.